Diálogo existência experiência. Meus poemas essenciais
Pedro Sevylla de Juana
Aos poetas ibéricos e ibero-americanos,
e a seus leitores.
PREFÁCIO
Menção
A poesia é a saída que a pessoa dá a seu labirinto
(Cesáreo Gutiérrez Cortés)
Minha reflexão
Alguns escreveram para que eu lesse, e pudesse escrever para que lessem outros.
Somos filhos de um pretérito, que é o da humanidade inteira e o do Universo ao completo. De uma evolução produzida seguindo regras, nas que o acaso joga um papel primordial.
Poesia é beleza e equilíbrio, é síntese e é ritmo. Poesia é pesquisa. Poesia é progresso. É doação é ar, é aço, é espuma, é raiz, é vigor, é embelezo.
Testemunho de Cesáreo Gutiérrez Cortés
Pedro Sevylla de Juana, académico correspondente da Academia de Letras do estado de Espírito Santo, no Brasil, autor de trinta e três livros, nasceu às onze horas da manhã do dia 16 de março de 1946. Sucedeu em Valdepero, vila próxima à cidade de Palencia, capital da província do mesmo nome na Espanha. Ocorre que eu nasci naquele lugar no mesmo dia, embora às cinco da tarde. O horóscopo nos descobre quase iguais, emborra a vida estivesse formando personalidades muito diferentes. Éramos companheiros na escola mista infantil, e no início da escola primária. Ainda tinha três anos de idade, Pedro, quando já lia. Dos seis aos nove anos, ele era um estudante brincalhão que distraía os outros com suas piadas, e bastava-lhe apenas uma leitura para saber a lição, quando Don Roque perguntava. Tivemos como professor a Dom Roque Mediavilla, e éramos coroinhas de Dom Jesús Fernández Pinacho. Ótimas pessoas, Dom Roque e Dom Jesús, cruciais em nossa formação e comportamento.
A primeira vez que Pedro falou em público, foi nessa época. Contava oito anos de idade. Desde o topo da escada do altar-mor, na igreja da Vila, por iniciativa de Dom Jesús e Dom Roque, declamou um poema de Gerardo Diego dedicado à Virgem. Aconteceu na missa principal no dia quinze de agosto, festa da Assunção, com o grande templo cheio de fiéis. O mestre e o pároco eram o complemento ideal dos pais, que fizeram tudo o que puderam por nós.
Com nove anos, alcançou os primeiros postos da escola municipal, sessenta alunos que acabavam aos quatorze. Por sugestão do professor, os pais de Pedro o levaram interno para o colégio La Salle em Palencia. Eu continuei na escola e na aldeia, ansiando sua companhia. Era divertido nos jogos e contava seus sonhos convertidos em histórias certas. Valente e determinado, ele estava na cabeça das façanhas, aquelas aventuras que sua imaginação tingia de heroísmo. Castelo, adegas, pombais, cercados e hortas de Valdegayán; ademais da acéquia e ladeiras de Husillos e Monzón, Taragudo e as gesseiras. Naqueles lugares estava o nosso mundo épico infantil. Ali, mentidas contendas a pedradas certas, lutas corpo a corpo de pares até que um derribava o outro. Incursões para a acéquia e o Río Carrión, páramos, montes e os povos limítrofes, satisfazendo uma crescente curiosidade. Pedro propunha, instigava, estimulava, encerando lugares e feitos, polindo-os.
Do colégio francês em Palencia volvia a cada três meses, de férias. Eu esperava no pombal de Dom Manuel quando seu pai o trazia. Me confiava seus sucessos e decepções sem orgulho nem pesar. Assim sei, que no segundo ano do ensino médio, devorava os textos ilustrativos do livro de literatura espanhola; e os livretos que cambiava na livraria da rua de San Bernardo, escapando pela capela-oratório aberta ao público. Naquele tempo, quando Pedro cumpriu doze anos, castigado por descrente a estudar durante a missa diária obrigatória, ele reuniu um curto romance: cinquenta páginas, onde suas leituras copiosas foram vertidas em ordem definida. Aos quatorze anos ele conheceu Gilbert Keith Chesterton, e esse encontro com as obras do mestre do paradoxo, facilitou a visão duma luz transformadora da escrita. No final do curso, início dos exames de revalidação no instituto Jorge Manrique, recebeu Pedro a aparição de Ana Maria Imaculada. Sorriso, naturalidade, modéstia, simpatia, e a profundidade dos olhos curiosos da garota de quinze anos, ficaram nele quando aprovou os exames.
Jazz, sua paixão feita música. Feridos os tímpanos pelos doze bofetões, um trás outro, do frade Teodomiro, prefeito de disciplina no colégio; perdidos os sons agudos, o canto rasgado de Louis Armstrong, sua trombeta desgarrada, o abriam, fortaleciam e abrandavam. Ella Fitzgerald. Louis e Ella juntos e separados. Charlie Parker, Miles Davis, Thelonious Monk, John Coltrane, Duke Ellington. Tete Montoliú em Barcelona. Jazz. Com frequência escrevia poemas ouvindo essa música inspiradora.
Acerca da crítica
«O crítico não é a bússola, nem o vento, nem a vela, nem o remo; mas tem um pouco deles e ajuda o veleiro a navegar.» (PSdeJ)
Entre os destacados analistas que elogiaram minha forma de sentir e escrever a poesia, escolho uma pessoa de enorme capacidade, quem conheceu muito bem minha obra poética.
Manuel de la Puebla foi doutor em Estudos Hispânicos, grande professor de Literatura na Universidade de Puerto Rico, recinto de Río Piedras. Fundou e dirigiu Ediciones Mairena e a revista Julia. Foi crítico, editor, ensaísta, antologista, poeta e narrador. Em Análises sobre La Deriva del hombre, um dos poemários aqui recolhido em parte, ele escreveu:
Análise de Manuel de la Puebla
Numa primeira impressão, o livro impacta pela intensidade do pensamento e pelo domínio da linguagem. Não é obra da improvisação, filha duma explosão romântica; sim duma paixão duradoura. Embora às vezes nos deslumbra com disparos geniais, o discurso vem mais da reflexão que do relâmpago. Obra do tempo, como se esclarece na contracapa: «O autor reúne no presente livro o trabalho dos últimos dez anos e a filosofia destilada no alambique da vida, somando-se às vanguardas poéticas atuais». O livro não é fácil de classificar. Pertence ao ensaio devido à natureza da exposição, disseminada em numerosos fragmentos. À filosofia, pela visão e julgamento da realidade. E pertence à poesia –a classificação que o autor prefere– porque muitas das ideias são poéticas em si e por configurar uma entidade poética, a exibem e modelam, e porque o fazem na linguagem mais original e apropriada: a das imagens, novas, frescas, audaciosas; sem importar a forma aparente de prosa dos parágrafos, porque essa prosa carrega ritmo, entonação e volatilidade própria da poesia. É, ademais, o livro todo, uma autobiografia e uma poética.
Vislumbro um processo desarrolhado em círculos concêntricos. Um que ata a infinitude com a individualidade. Outro a universalidade com o poeta, e o da cosmogonia original que absorve o biográfico.
Desde as páginas iniciais da primeira parte, vi o reflexo dum conhecimento preciso e imenso; um reflexo dum pensar profundo, tão seguro em suas afirmações (esta é uma palavra chave) que parece a fala dum avançado a seu tempo. Pensar e dizer parece simultâneos. Simultâneos também vão filosofia e poesia, numa sintética desova do espírito. É o poema da gênese, a ordenação dum mundo que nasce na eternidade e se desenvolve na infinitude. Possui, por essa razão, um alento cósmico, um âmbito natural do pensamento anterior à palavra. Mundo nascente num momento chave, a origem do tempo historial, já sujeito aos números. Pensamento e poesia são simultâneos, eu disse, porque quando nascem, quando recebem a luz, estão cobertos de imagens, porque nascem da unidade em que a linguagem se origina. A eternidade, a infinitude, o cósmico e o telúrico, se entrelaçam para formar um universo conceitual imensurável, no qual todas as coisas participam e até as opostas adquirem significado.
Entre medos e dúvidas conclui o poeta se perguntando sobre o destino, o curso do mundo e sua defesa contra os poderosos:
Revista Ceiba Universidade de Puerto Rico.
Sobre Manuel de la Puebla, eu disse num artigo: «Crítico equânime e acertado, pesa e mede a obra dos outros, desejando ser pesado e medido com a mesma balança e a mesma vara. Não destaca as dimensões escassas do que julga, nem ressalta as extensões excedidas, as mais favoráveis ao autor. É o conjunto o contemplado. E em sua tarefa de editor, não exclui a nenhum poeta devido a seu presente imperfeito, dando crédito às possibilidades futuras.»
Diálogo existência experiência. Meus poemas essenciais:
No princípio foi o verso. E em contato com a realidade, o verso se fez prosa. A prosa primeira era prosa poética. E a insistente realidade, com seu toque constante, a foi fazendo mais e mais prosaica. Contos breves, reflexões e, por fim, o relato longo, o ensaio, a biografia e o romance. Mas no interior da prosa o verso dormitava. Um bom dia, há poucos anos, aflorou o verso, filho da realidade antiga, para tomar posse do agora, e ficar em plena igualdade com a novela.
Esta obra é a síntese duma biografia de trabalho poético: vivência, leitura, reflexão e escrita.
PRIMÍCIA
Fechando um impossível círculo, no primeiro lugar eu quero mostrar o meu último poema escrito.
. Dom Quixote e Sancho no Caminho de Santiago
Segunda parte da genial obra, capítulo acrescentado depois do último.
(Da resolução tomada pelo vencido cavalheiro,
de visitar Santiago durante o imposto sossego.)
Fugindo das calçadas reais, da férvida
Altisidora que inquieta o da Mancha,
da duquesa, com o escudeiro tão atenta;
fiel dom Quixote à sua amada Dulcineia
e à sua natural Teresa Sancho Panza,
tomam em Barcelona a rota pirenaica.
Resolvem, escudeiro e senhor, em proveitoso diálogo,
fazer-se perdoar do Céu compassivo,
tanto os erros muitos como os muitos pecados,
percorrendo piedosos o Caminho
que leva ao sepulcro do apóstolo Santiago.
Foram obtidos salvo-condutos e licenças,
sem ditar -como se estila- testamento,
mochila e abóbora acomodam, saial e roseta
e em fortes bordões apoiam seu empenho.
Vislumbram Somport mais seguem adiante,
desejoso o Cavaleiro da Figura Triste
-mais triste que nunca nesse instante-
de ver no abrupto Roncesvalles
a pegada de Roldán tão admirada
e dos conhecidos Doze Pares,
da espada em pessoa transformada,
a bem forjada Durandarte.
Passam as noites em claro,
porque aflige o cavalheiro a promessa absurda,
de não tomar armas durante um ano,
arrancada pelo de ´A Branca Lua.’
Torturam o escudeiro impedindo-o dormir,
os açoites insatisfeitos prescritos por Merlin;
única medicina contra o bruxedo da sem par Senhora,
que sendo princesa se trocou em labradora
De Roncesvalles partem buscando seu destino,
Dom Quixote e Sancho, inusitados peregrinos.
Trás o descarnado cavalo e o jumento pardusco,
a pé chegam por Viscarret até Pamplona,
Monreal, Estella, Nájera e Burgos.
Na Cidade do Cid, herói que o Engenhoso elogia,
o rústico sucumbe ao embelezo
do dispositivo que move na catedral o papa-moscas;
e assombra o fidalgo, no seu pensamento,
que das pétreas torres as pontas
não cheguem a tocar as nuvens dos Céus.
Açoitado Sancho pela graça do destino,
consegue da fortuna desigual
alcançar um bom partido,
pois cobra a meio real
os açoites avaliados a quartilho.
Cento e trinta lategadas se dá Sancho,
com áspera corda de resseco esparto.
Os moços castiga em verdade sobre seu lombo,
equilibrando assim as patadas recebidas,
ao recolher de um frade os despojos,
na aventura da princesa biscainha.
E o magro dom Quixote jejua
para reforçar o efeito da tunda.
Em Castrogeriz e em Boadilla detêm-se
e sem temer o sangue que produz o dano
pensando em dá-las aos almocreves
duzentas chicotadas se dá Sancho.
Em Frómista, acendidos os semblantes
ante São Martín de traça esplêndida,
segundo o esforçado andante
do românico a fábrica mestra,
cento e setenta pancadas de castigo
a quem o mantearam na pousada,
aplica Sancho no tronco amigo
que segura sua cabeça alçada.
E os dá com tanta raiva que em um ano
não poderá vingar-se de nenhum outro adversário.
Exalta Dom Quixote o afã posto no castigo,
do qual julgava incapaz o seu escudeiro,
de carne frouxa e espírito tranquilo;
e a baixo custo em boa hora,
mil seiscentos e cinquenta reais,
já vê em Dulcineia, deixada a aparência de pastora,
a princesa mais formosa que registram os anais.
O corajoso cavaleiro do olhar triste,
em Villasirga revela a quem sempre o acompanha,
que nesse povo afortunado existe
um tesouro único na Espanha.
Santa Maria é a templária igreja que faz de arca:
Pantocrátor, Apostolado, Anunciação, Epifania,
ao retábulo maior, aos sepulcros e à Virgem Branca
que o Rei Sábio louva em suas Cantigas.
Um fervedouro humano representa o Caminho.
formigam por ele gentes bem distintas:
estudantes, patifes, reis, soldados e mendigos,
que falam da Europa as diferentes línguas,
intercambiam culturas sedimento de séculos
e as bem entesouradas experiências;
enchem templos, refeitórios, hospitais e abrigos,
descansam, rezam, curam chagas, se alimentam.
A estepe castelhana descobrem com assombro,
campo despovoado em favor das cidades
dizimado pela peste e o imã do Mundo Novo.
A expulsão de judeus e mouriscos,
a Inquisição e a barbárie repressiva,
chega a ver um dom Quixote intuitivo,
fidalgo para quem o trabalho não é estigma,
entre os males que levam a Castela,
em prata americana submergida,
à dependência exterior e à pobreza.
Torna em Carrión o escudeiro às duras disciplinas,
e diante do magnífico Salvador da igreja de Santiago,
cento e quarenta e oito lategadas se propina,
fustigando o galeote roubador do asno.
E sem prudência alguma engolem pão e vinho,
convento de San Zoilo refeitório e claustro,
pétreos retratos de monges distinguidos.
Antes de entrar em Sahagún, da oitava etapa cabeceira
segundo o Codex Calixtinus no seu texto sábio,
em um hospital assentado do Valderaduey na ribeira,
alivia o escudeiro suas feridas com um bálsamo,
que sem ser o de Fierabrás obra excelências;
mas a lança atada a Rocinante não floresce,
como acontece na lenda que dom Quixote evoca,
onde o próprio Carlomagno se intromete.
Atravessam o Cea pelo caminho romano,
onde Panza, pensando nos reais prometidos,
duzentos cardeais acrescenta em seu espinhaço,
destinados ao maior enredador existente e existido,
conhecido em todo o mundo como Merlin o Mago;
e tomando de Mansilla das Mulas o caminho,
acercam-se a León de um só tranco.
Admiram de São Isidoro a trabalhada pedra,
as obras da Catedral e de São Marcos,
e na margem verde do Bernesga,
pelo menos cento e noventa lategaços
recebe queixoso o escudeiro com empenho,
posto o vingador afinco nos velhacos
que em Barataria remataram seu governo.
Em Rabanal diminui o desânimo que a alegria impede,
célebre Casa das Quatro Esquinas,
pois estão perto de encontrar o Rei Felipe,
peregrino entre soldados duma escolta reduzida.
Seguindo o uso enraizado,
na Cruz de Ferro depositam as pedras trazidas,
os rodados cantos.
Ponferrada, Carracedo e Villafranca,
os veem passar sobre as bestas,
a coragem decaída e muda a palavra.
De pão e água se alimenta o cavalheiro em despovoado
e de caldo de convento em hospitais e hospedarias,
de modo que os seus agudos traços
parecem afilar-se na comprobação diária.
Os açoites que enriquecem o bom Sancho
longa conta confiada à memória frágil,
brunhem o espírito deixando o corpo algo esmagado.
Não são despojos de encarniçada luta,
são romeiros que peregrinam a Santiago
e pastores serão quando concluam.
De Triacastela a Palas, na tardinha esplêndida,
desde o longínquo Monte do Gozo,
alcançam a visão da idealizada Compostela,
enchendo de lágrimas seus olhos.
Entram no Obradoiro como se fosse o Céu mesmo,
com idêntica humildade e devoção parceira
jubilosa sensação de prediletos.
O pórtico da Glória, solidez ademais de equilíbrio,
lhes entrega a catedral e as relíquias
ocorrendo ali o prodígio:
a mente de dom Quixote se equilibra
e Sancho se converte em erudito.
Aceitada a verdade dos que consideram mentiras
as descomunais e enredadas ocorrências
contadas nos livros de cavalaria,
Quixote e Sancho voltam à aldeia,
onde o sacerdote e o barbeiro, a ama e a sobrinha,
conhecedores do regresso, os esperam.
El Escorial 16 de marzo de 2023
INÍCIOS
. Espaço-tempo no Universo
Em seu próprio final inalcançável
se enraíza o impossível princípio do tempo
e as bordas do espaço se afastam à velocidade da luz
seguindo os trinta e dois rumos da rosa dos ventos.
A eternidade é o tempo que demora a luz em percorrer
o espaço infinito,
a infinidade é o extremo espaço que a luz atinge
em seu eterno percurso intensivo;
se explicam juntas ambas,
a uma sem a outra
não são nada.
Valdepero, 1962
. Invenções primeiras
A água e a luz,
e todo o demais
depois;
os charcos e as candeias
a obscuridade e os desertos.
O homem teve que inventar justiça
e paz
e teve que inventar
amor;
ao chegar não havia nada,
água e luz.
Inventou os gritos
e as garatujas,
o negro sobre o alvo
e o azul.
Inventou as redes e o arado,
o dia e a noite,
o bem e o mau.
Inventou a tristeza
e desenhou sorrisos no ar
para ser guardados em cofres fechados.
Inventou a alegria
e lançou ao mar máscaras trágicas
que imitavam à morte desconhecida.
Compreendeu nesses dias
o que a vida era
e sonhou que ele era vida.
Assim inventou os outros de noite
e pela manhã semeou os campos,
no entardecer contou as estrelas que nasciam
e teve ocupadas as mãos
domesticando tormentas inimigas.
O homem
teve que inventar todo,
quando chegou
nada tinha.
Palencia 1962
. Meu mar de pedra
Escolho rodeado de vida,
atol cingido por movediços braços
que mexem a imagem cristalina
dos hipocampos machos
incubando ovos de mil fêmeas tímidas;
na planície densa, na meseta dura
nas ladeiras que circundam esta terra minha
encontrou o mar sua sepultura.
Esse páramo de firmes fundamentos
estaleiro de varados navios
canteira aberta de românicos templos
castelos góticos
palácios solarengos
campo de calhaus embranquecidos
teve marulhos elevados lá no pleistoceno.
Nesta pedra alta,
nesta altura pétrea
se enterrou um mar carregado de substância,
oceano de vida alongada trinta séculos e mais de mil proezas.
Baixéis e goletas,
houve galernas e naufrágios,
percebo ainda as quilhas afundadas na nevoa
sombra preta de azinhais coalhados
monte baixo de lebres e cobras.
Caminho eu às apalpadelas entre as turvas ondas
espumas que engessam a terra de labor
e agitam indómitas pombas.
Minha boca faminta de esturjões e merluzas
dá salobres mordidas de papoilas,
dentes que põem a intenção na captura
e escondidos no beijo te devoram;
mar interno, mar de altura
amante imensidade inquieta e mórbida.
Granados trigais de vaivéns te agitam
corpo de mulher, humidade tíbia,
vegetação ativa
ondas, marés e correntes
tantas e tantas vezes repetidas.
As estrelas de mar são ondeantes
estrelas vespertinas
e as redes de anchovas se inflamam,
douradas espigas
ortigas, tomilho, sarda
nenúfares flutuantes e sereias dormidas.
É minha terra! Exclama a garganta muda
e aqui, precisamente nestas rochas,
em meu deserto de espinhas maduras,
durante três milénios não esquecidos pela longa memória
houve banhos tíbios e donzelas nuas.
Minhas líquidas origens, minha casta de marinho
descubro na tigela inundada das mãos
caldo de cultivo em minerais rico
torrão compacto ou disgregado
gozoso de flanges e de cílios.
Oh! meu oceano de pedra mãe
quanta brisa faz falta para segar-te
e quanto anseio de eternidade
para arar teus fundos abissais.
Oh! meu mar de terra
quanto arado te rasga,
e que pouco penetra.
Valdepero 1963
. O homem essencial
Nos remotos tempos, o Deus das Colheitas,
quando ainda não existia a espécie humana,
de cada região desabitada da Terra
recolheu o grão cereal que cultivava.
Somou arroz, trigo e aveia,
milho e sorgo uniu ao centeio,
sementes de todas procedências,
levou ao moinho mais dum cento;
farinha tamisada em uniforme mescla,
amassada e submetida a fogo lento,
até torrar bem a camada externa.
Do resultante pão recém-cozido,
um pedaço retornou a cada comarca,
do qual provém o homem primitivo:
igual composição, distinta estampa.
Seja face o homem, ou seja costas,
rígida crosta ou suave miga,
a cor é o único que troca,
a substância humana não varia.
El Escorial 2008
. Criatura evolutiva
Ardoroso fluído da noite,
impetuosa e desbordada sementeira,
esperma lançado à conquista
do óvulo fechado que se entrega
ao flagelo portador de chaves
capacitadas para abrir cancelas;
a existência em si mesma é um milagre
de aleatórias coincidências.
Se a seleção resulta favorável,
nasce o homem nesse parto,
resistindo o fraternal embate
dos membros do clã que têm herdado
o fígado, o olfato e o pelagem
de um bilião de antepassados.
Conquista um mamilo na camada,
dos que manam leite e mel,
resina e seiva branca;
e suga até nos sonhos
perfilando dentadas.
Um cálido lugar abaixo da pata
ocupa se empurra com afinco,
pois a neutralidade materna, tão provada,
não vê divergência entre os filhos,
à prole inteira cuida e ama
e deixa a tarefa de eleger sobreviventes,
à Natureza que protege a quem se adapta,
de inteligência sobrado ou bem valente.
Obedecendo um ancestral impulso
abandona cedo o morno berço,
para iniciar a dispersão no mundo.
Pesquisa e acaba descobrindo,
explora e a continuação conquista,
adora e levanta firmes templos,
avança e o tomado fortifica.
Põe os factos ao serviço da ideia,
encaminha o fogo e a si mesmo se domina,
equilibrando o coração com a cabeça.
Escuta o homem os gemidos
que arranca o vento nos desfiladeiros,
as alongadas vibrações das canas junto ao rio,
os trovões produzidos golpeando um tronco oco;
e como se trata de um gostoso exercício,
depois de laboriosos ensaios e alguma que outra emenda,
transforma em música os singelos
sons da Natureza.
Nos frios invernos imagina
dragões, grifos e quimeras;
inicia-se na pintura, trabalha a argila
e observa as estrelas;
descobre no respeitoso diálogo
um pilar de convivência,
levanta cabanas e povoados
aperfeiçoando as toscas ferramentas.
Habita o homem um espaço sem ameaças,
mistura outros sangues com seu sangue,
adopta uma escala de valores bem provada
e após passar cem anos superando adversidades,
translada o aprendido à camada.
Évora 2010
. Experiência vital
Nasci da terra, da água, do vento,
do ardente sol de meio-dia;
nasci da vontade, da esperança,
do perseverante amor à vida.
Num afã talvez exagerado
de compreender os segredos do mundo
adiantei um mês meu nascimento.
Cheguei um pouco cru, falto de cocção, imaturo.
Não soube esperar o tempo necessário
que o exercício tem ido estabelecendo nos processos
e não o remediaram os fracassos.
Observando o semblante dos charcos,
mirada posta nos cristais,
aprendo meu aspecto de animal humano,
complexo labirinto de cinzas e rochas,
desde a pedra gastada que faz o peito,
até o cartão dissimulado das costas.
Tão afastado das fórmulas didáticas,
tão rígido chega a ser meu adestramento,
colégio La Salle, Irmãos das Escolas Cristãs,
que afoga em meu peito o sentir sincero,
apaga o candor da mirada,
salga a ribeira fértil onde arraiga o intelecto
e extirpa o afeto incorporado nas palavras.
Afirmam as calçadas os pedreiros:
vara longa do martelo
lançando esquírolas;
humanos golpeados devolvendo
os golpes recebidos da vida.
Couraçada de ilusão,
pletórica de medos,
a experiência dos meus ressuma realismo,
e sabem que só com esforço
se transforma o destino.
Os acontecimentos mais notórios, que subtis!
-nevoeiro, etéreo tule- que breves! que incertos!
não conheço ainda os detalhes
e já o miolo esqueço.
Tanta sede afoga meus cultivos
que nomeio com nomes de água as penhas
as terras rachadas pelo estio
as raízes ressecas.
Bigorna e martelo
ferro submetido ao vivo fogo
se esforça na frágua o ferreiro.
A luminosidade imaculada do ambiente,
me permite visões ignoradas,
e lonjuras diviso surpreendentes.
Avança em caravana o existente,
procurando a igualdade com a rasoura
que todo o torna diferente.
Emoção e lógica caminham juntas
-humanas complementares faculdades-
mão na mão por vales e planícies,
e meu interior resulta invulnerável.
Às vezes o pensamento parece tomar a dianteira,
até que o sentimento avança decidido
atingindo uma vantagem manifesta.
Observo rendido a agonia
da cultura rural equilibrada,
arraigadas práticas campesinas,
vencidas pela atividade industrial e cidadã,
mais forte em aparência,
mais eficaz, menos ingrata;
e guardo as imagens postremas,
funda raiz,
nostalgia tépida.
O milagre tantas vezes repetido da existência,
o surgir da água nos mananciais claros,
solidões, as rimas e as lendas,
pai Douro, o romanceiro cigano,
e as azinheiras cárdeas
na trova gozosa e dolorida
me iniciaram.
Sem abandonar minhas tarefas me converti em poeta,
e musa ditava loas doces, amargas elegias;
versos formados por pétalas de rosa e humanas caveiras,
princípios dispares que enquadram biografias.
Poemas e relatos compõem meu propósito;
palavras trabalhadas com a obstinada insistência
de quem ara e repovoa um velho souto,
pensando nas gerações vindouras
mais que no benefício próprio.
Valladolid 1967
. Alforje de convencimentos
É cedo até que é tarde:
existe um ponto idôneo de limite incerto,
para levar a termo feliz afazeres variados;
tão fugaz e transitório,
que quando chega a ser
começa outro novo.
Tudo busca a ordem, tudo pretende o caos,
e o leve peso de um grão de trigo,
leva a indecisa balança
ao súbito desequilíbrio.
Descubro no mundo uma despensa,
cheia de vegetais vivos
tímidas gazelas,
colibris e crocodilos
espreitando a sobrevivência;
uma corrente que vai da serpente à ave
e do pungente espinho às baleias.
A rocha lavrada, a estrela de mar,
o marfim do elefante
e o sangue do irredento;
levam impresso um código de barras
que explica composição e preço.
Ao ar,
ao ar que vibra nos ouvidos
quero gritar o manifesto de meu sentir mais arraigado,
porque dentro de mim ferve o homem comovido
e se agita o afetivo ser humano.
Me fere a crescente escassez dos necessitados,
os progressivos excedentes dos ricos,
e tremo como ninho de gusanos,
como epicentro sísmico,
como revolto povoado.
Como da mortífera peste
do esbanjamento fujo
do desperdício inerte.
Ideias convertidas em feitos,
resido mais em mim,
equilíbrio manifesto,
quantas menos necessidades
admito e alimento.
16 março 2002, todos os tempos e lugares.
. O primeiro impulso
Assim que a indómita Natureza
facilitou ao homem abatido e exausto
um momento de trégua,
as inteligências reflexivas dedicaram seu esforço denodado
a escrutar enigmas de enganosa aparência:
o sopro vital de corpo e pensamento,
os pontos de saída e confluência
e o sentido último do Universo.
Desse processo intelectual surgiu um Ser único e primeiro,
arranque e fim de tudo o existente e existido
por desejá-lo eterno;
e por considerá-lo infinito:
um Ser enorme que contém em seu seio o firmamento.
Identificou o homem o Ser com o bem soberano,
tão generoso que permite a existência do mau,
tão forte que o vence a diário.
Em lugares elevados ou em cruzamentos de caminhos,
erigiu altares bem dispostos
para lhe oferecer dons e sacrifícios
Fundou ordens de ungidos sacerdotes,
de sacerdotisas intactas e obedientes;
encarregados de pronunciar -os menos zotes-
a última palavra sobre o bom, o mau e o indiferente;
e de arrecadar -os mais fornidos- primícias, dízimos e dotes
com os que levar o credo a todas as gentes.
O homem comprovou com satisfação velada
que a existência do Ser dava resposta a qualquer pergunta,
esclarecendo qualquer diligência humana:
a organização social, a administração de justiça,
a liberdade sonhada
e a igualdade na linha de partida.
O homem se dedica desde então por inteiro,
a pôr em marcha a bucólica sociedade globalizada,
a da tribo única e o regrado pensamento,
uma massa invariável e normalizada
de ativos consumidores e votantes satisfeitos.
26 dezembro de 1998
O SER HUMANO
. Homem e fome
Fome,
fome, fome;
duas sílabas apenas
e rompem o fluir do homem.
Agente ou paciente
aprofundam a cisão do homem
apagam os caminhos do homem
dessangram
o coração do homem.
Tão só duas sílabas
e desdizem, invalidam,
desautorizam, rejeitam,
revogam,
anulam,
negam o homem.
Estoril 2010
. Olhada escrutadora
Volta e luta, defende teu projeto.
Egipto, Roma, China, Índia, Grécia, Babilônia
o peso atómico do oxigênio,
o número primo e a disgregada rocha,
os erros salpicados de acertos;
a troca de promessas por resistentes ferragens,
a reiterada descoberta do fogo,
mentiras e verdades intercambiáveis,
o principal e o acessório suplantando-se de novo
a liberdade caindo em velhas fraudes
da tecnologia e o dinheiro;
e o homem valente rompendo amarres
com as confabulações e o silêncio.
Me inquietavam os enigmas da primeira mirada
e adorei a Terra fértil até saber
que era infecunda sem água.
Adorei a Água, compreendendo
que é coisa do Sol
a inexplicável magia
da evaporação.
Adorei o Sol ignorando
que sua fogueira arde com luz viva
porque o sopro tempestuoso do ar
acende o calor, a luz e a energia.
E adorando
o Vento fugitivo
descobri meu erro,
o imutável desvario.
Os enigmáticos deuses de hoje e de sempre,
faróis agarrados aos mais altos luzeiros,
perpetuamente insatisfeitos se a tradição não mente
-pagodes, catedrais, mesquitas, sinagogas, beatérios-
com regozijo aceitam reverências e lisonjas dos fiéis,
manifestando-se atalho para os caminhantes crédulos.
Estrela orientadora no sombrio
considero que a razão é minha guia
e vejo na fé uma roda de molinho,
a máquina do trem que descarrila,
oca explicação para meninos.
Os cinco que sou se complementam e se ajudam:
o que goza de vista explica a quem tem ouvido
as cores puras da rosa nua;
e este diz a música do vento a quem possui olfato,
que entrega aos demais os diversos aromas
e recebe dos favorecidos com o gosto e o tato,
o sabor dos alimentos que toma
e a textura do corpo acariciado.
É cedo até que é tarde,
existe um ponto idôneo de limite incerto,
para levar a termo feliz nosso afazer;
tão fugaz e passageiro
que quando chega a ser, deixa de ser.
Tudo tende à ordem, tudo tende ao caos;
e o leve peso dum grão de trigo,
leva a indecisa balança
ao súbito desequilíbrio.
Escreve meu epitáfio uma singela modificação:
Energia e matéria,
pensamento, palavra e ação,
tempo e terra,
destreza e esplendor.
Madrid 1975
. Versos para um poema humano
No solo acho mais vida,
mais dor,
mais alegria.
Para mim, querer
é mais importante
que poder.
Mais que a capacidade
agora e sempre
aprecio eu a boa vontade.
Meu sentido da justiça, da compensação, do equilíbrio
a águia caindo sobre o lobo que persegue um cordeiro;
o pastor insistente pedindo
que não dispare a águia o caçador certeiro,
tiveram oportunidade de me fazer sombrio,
e me o fizeram presto.
Cíngulo sagrado, cerco de espuma,
nos entardeceres de sangue e majestade,
o Oeste se cingirá a aurora a sua cintura.
Cessado o vendaval das galernas,
me sirvo das pupilas que o viram todo:
a cinza e o pardo das terras
e o azul glorioso.
Desde o olho que entrega a mente à nostalgia,
subido nas lembranças olho:
álveos sedentos de correnteza impávida,
ladeiras de resseco pergaminho;
e vejo nos páramos de pedra,
valados que governam os caminhos,
escudos não lavrados de casas solarengas,
catedrais, mansões e palácios esplêndidos
dormidos ainda na canteira.
Tudo o que sinto, o que intuo e o que vejo;
configuram minha quebradiça integridade,
uma fonte perdida no deserto.
Lábios, mãos, sentimentos;
resido mais em mim
quantas menos necessidades admito e alimento.
Ser livre é discernir entre miragens e verdades,
viver sem mandar nem ser mandado,
eleger sem a inquietação de equivocar-se;
ser livre é ser, existir, permanecer no alto
não tem a existência outro caráter.
Tão indomável o leão como o cordeiro,
tão obrigados a manter o juízo;
gémeos ambos no domínio de meu peito,
querem cruzar juntos a ponte do destino,
vida e morte nos extremos.
O porvir depende do entusiasmo ativo
que a infatigável vontade imprima,
à firme decisão de caminhar num só sentido,
superando os obstáculos acumulados um dia e outro dia:
inundações, furacões ou sismos.
A exceção não confirma a regra,
gota de sangue sobre mar de leite
a modo de evidência.
A nega, a impugna, a rebate;
a contradiz, a invalida, a rejeita;
altera seus termos constantes,
a faz abrir postigos e muralhas,
e se converter numa lei mais grande,
-gradações da cor rosa, exempli gratia-
onde caiba aquilo que se dá mais tarde.
Atravesso a névoa enchida de mistérios;
como dardos noturnos são meus olhos,
e vão burlando cercos.
As admoestações pérfidas,
como sou,
me fizeram.
Me fizeram como sou, bom e mau,
as oportunas palavras de alento,
o reiterado exercício quotidiano,
a dificuldade de entendimento
e a persistente oposição do arcano
a explicar seu secreto.
Reparto numa cesta a ração de matança,
o caldo num caldeiro;
e tantos amigos tenho que não bastam
as quinze arrobas do cerdo.
O rígido me atemoriza: parapeitos e barreiras;
tenho rompido formas: frágeis vasilhas e troqueis resistentes;
põem-me em guarda, me entrincheiram,
o inflexível e permanente.
Constante agitação de correntezas,
barreira de flexíveis colinas,
despensa que se espalha e regenera
o veleidoso mar me surpreende e me cativa.
Contemplo o céu acolchoado de nuvens de algodão,
concretas figuras modificadas a cada instante pelo vento:
cúmulos em forma de monte, de pássaro ou de flor;
nimbos feitos rostos, cavalos, blocos de gelo;
estratos que excedem a margem da imaginação.
O que vai para além do meio-dia
e traspassado o crepúsculo não morre,
o que acompanha ao tempo em sua rotina,
se apodera do homem
o minora e o domina.
A evolução, a troca e as esperas
o salto, o retrocesso, a mudança,
e o que modifica sua essência,
reclamam minha atenta vigilância.
Encomendo minhas viagens ao tímido veleiro
assentado em ondas sucessivas,
à asa frágil do avião ligeiro.
Água ou areia,
o incontável é de minha atenção objeto,
os areais de estrelas
do cintilante firmamento.
No fugaz tenho meu solo,
o fugidiço me cede seu refúgio,
coluna, parede e teto.
Pelo momento ao menos
não creio em nada fixo;
só no efémero,
no temporário, fio.
Reviso cem vezes o já feito,
as ponderadas teorias,
receio de meus acreditados méritos,
de minha fama merecida;
hoje duvido novamente das lorotas
nas que ontem cria
e me convenço de verdades novas
que amanhã serão substituídas.
Do permanente fujo:
da arrogante vida eterna.
do seu constante influxo.
Valdepero, Palencia, Valladolid, Barcelona, Madrid y La Habana
. O sonho do escravo
Do outro lado da muralha,
vem a sua queixa:
imitando uma garça,
me chama a negra.
No barracão de machos,
responde meu corpo, se estreitando,
ofídio humano
por entre catres ferrados.
Nas janelas altas se inicia
a claridade tênue da Lua,
ante a porta trancada os vigilantes vigilam
e a matilha ulula.
Segismundo me nomeiam,
e trabalho de escravo no engenho de cana
levantado a umas léguas
da cidade de A Havana.
Finaliza o ano mil oitocentos e quarenta,
novembro já avançado;
e tenho, depois de longa espera,
meus direitos ante o amo.
Me iniciará na religião para receber o batismo
e ser doutrinado,
porque o homem e a viva imagem
do Criador amado,
patrão dos amos, e capataz
de capatazes o nosso Deus branco.
Nos dias não específicos
as horas de trabalho serão nove ou dez,
e durante a colheita, ou se fosse preciso,
não mais de dezesseis
por princípio.
Nos domingos e festividades
após missa trabalharei duas horas
asseando e ordenando a casa grande.
Não mais de duas horas, salvo que haja
tarefas indispensáveis
ou estejamos em tempo de safra
Devo obediência às autoridades,
reverência aos sacerdotes, respeito aos brancos
e boa disposição com meus iguais.
Duas comidas terei, ou três se fizesse falta:
inhame, mandioca, seis ou oito
batatas-doces ou bananas;
oito onzes de carne ou pescado,
e quatro de arroz, hortaliças,
farinha ou feijão branco.
Gorro ou chapéu receberei em maio e dezembro
mais uma camisa e um calção;
a cada dois anos jaquetinha de baeta
e em janeiro um cobrejão.
As crianças, até apontar dos dentes nas gengivas,
receberão comida ligeira,
camisas de listrado, e nas horas de triga
ficarão no alpendre à incumbência
duma ou várias
mulheres negras.
Irei acompanhado do dono se devo sair da fazenda,
ou levarei um escrito que autorize a saída
e descreva as minhas senhas.
Qualquer está no seu direito se me delata
porque caminho só ou não me ajusto
à rota exata
do salvo-conduto.
Quando me comporte mau por excesso ou defeito,
receberei cárcere, grilhão,
corrente ou cepo;
sempre nos pés, nunca na cabeça,
e os açoites não passarão de vinte
na sessão completa.
Se uma escrava dum engenho novo
acedesse a se casar comigo,
a comprará meu dono
e comprará a seus filhos.
E quando nos casemos,
do barracão a um bohío
passaremos.
Tudo fica regulado, já conheço a lei,
e sei que tenho direitos,
desde ontem.
Certamente, doravante,
cumpridas as disposições do Governador Valdés,
a minha vida pode ser invejável.
Nas escuras noites
depois de rezar a Deus pelas autoridades,
os sacerdotes,
donos e capatazes;
depois de pedir pelos brancos e meus irmãos,
esses escravos de cor, submetidos e indomáveis,
sonho que sou um príncipe
abraçado à negra minha,
e quando sejamos livres como deve ser toda a gente
ocuparei o trono que me corresponde por justiça,
sendo eu um rei indulgente
e minha amada a melhor rainha.
(Condições desumanas qualquer diria
mas o triste é que há trabalhadores
que recebem pior trato a cada dia.)
La Habana, 2010
. Se morre a Utopia
Nos tempos presentes da nossa vida
quando a esperança é tão efêmera,
e vive em desencanto diluída,
quem oferecerá um futuro cobiçado
se morre a Utopia?
Quem descobrirá a poesia,
flor entre espinhas nas sarças,
veleiro de papel à deriva?
Quem porá imaginação nos grafitos
– engenho das frases –
que derrube barreiras e recintos?
Que exemplo estimulará nos jovens a fantasia,
que façanhas relatarão os avós aos netos,
quem defenderá o povo da constante injustiça,
quem restabelecerá o equilíbrio do dessossego,
quem se oporá à insaciável avarícia
dos que acumulam montanhas de dinheiro?
Quem ousará avançar por novas vias,
quem se oporá aos interesses dos mais interessados
que será da diversidade de teorias
quem estará de nosso lado,
se morre a Utopia?
Quem reduzirá as insuperáveis diferenças
que separam falcões de pombas cada dia,
quem amará do homem sua quebradiça essência,
quem semeará a paz, o perdão, a valentia,
o amor, a liberdade, a convivência
se morre a utopia?
Quem impedirá que deem forma a nossa argila
em desumanos moldes
os que fazem ferramentas das vidas?
quem acolherá as exceções,
quem será do diverso garantia?
Quem nos livrará da inocência,
quem nos sacará da estatística,
quem sobreviverá ao sistema,
se morre a utopia?
Madrid 1974
CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS
. Saudades
Eu tinha uma mula parda,
forte, mansa, nobre
ousada.
E tinha um arado
com as rabiças de faia
e o timão curvado,
vertedora extensa
e uma relha aguda
para abrir a terra.
Eu tinha uma mula parda
e tinha um arado,
e juntos, os três,
íamos ao campo;
e no campo abríamos sulcos
e nos sulcos semeávamos o grão.
Eu tinha um plaustro,
varas de roble velho
eixo temperado,
e seu movimento
me aquietava o ânimo.
Eu tinha uma mula parda
e tinha um plaustro,
e juntos, os três,
íamos ao campo,
trazíamos a sega à eira
e a parva era um pão dourado;
oro a palha seca
oro o grão.
Eu tinha uma mula parda
e tinha um arado,
eu tinha uma mula parda
e tinha um plaustro;
e a terra me dava
cem grãos de ouro
por cada grão.
Madrid 1963
. As espigas tronchadas
O nó central da inclemência
se resolve em verdes prados,
em pálidas cores o verão se resseca
murcha-se o outono em ocres arrebatos
em folhas amarelas,
em crostas, em bagaços.
Ante as instáveis gotas de orvalho me amoleço,
ante a diminuta névoa suspendida
gelosia natural do Firmamento.
Granizo, escarcha, chuva ou neve
persigo a água cristalina
regeneradora e renascente.
Quero descer na catarata
eflúvio ser de seu vapor evaporado
ser espuma da água fustigada.
Cai gota a gota o chuvisco
passo a passo, rama a rama
desfalece ritmo a ritmo
grão a grão se desgrana.
Moldou o rio seus meandros,
leito aberto,
seixos rolados;
cavalgou a madrugada sobre formas mais precisas
fomos muitos para as escassas lebres
e levantou irmão contra irmão a cobiça.
«Que iniciem o ataque os arqueiros
acometam depois os de a cavalo
terminem corpo a corpo os infantes a refrega»
com agressivo brado
arengou o estrategista na traseira.
«Os mortos recolhidos atrás da linha de partida
não atingirão o ansiado paraíso»
sentenciou iracundo o druida.
Não houve vitória que admitisse terna os pacíficos
feridos pelas armas dum e outro bando
nem leito de plumas
que acolhesse os inválidos.
Foram pícaros os que reivindicaram o triunfo
conseguido pelos mais ferozes;
e para premiar aos heróis inúmeros
faltaram prezados galardões.
Bandeiras, tambores e trombetas,
páginas abertas dos livros;
cada um no seu sítio: luta ou cautela
campo de batalha ou caminhos.
Tinta indelével das plumas,
sentimentos, intenções, desígnios:
tudo o aniquila a crueldade das disputas.
Arrasa a guerra povoados e colheitas
afasta os horizontes de chegada
abandona terrenos abertos pela relha
arranca corações robustos de lava
separa os potros da égua
mata a vida na vida engastada
tergiversa a liturgia, e o mel das abelhas
pelo solo esparrama.
Cada punhado de terra oculta uma gota de sangue.
veias confiadas no raso
artérias surpreendidas nos vales,
e no mais elevado do alto
a desmedida ambição culpável.
As cavilações do pensamento libertado
produziram duas teorias contrapostas,
e cada uma delas formou um bando.
Carregada de pessimismo a primeira se expressa
«o mundo é redondo para que nosso êxodo não conclua».
A outra trata ao Demiurgo com enorme indulgência
«para acolher nossa marcha sem final
criou a esfera».
Atuam enfrentadas
porque são simétricas.
Infundo mansidão aos cães que uivam os lobos,
aos lobos que atacam os homens
e aos homens inimigos dos uns e outros.
O meu é tender pontes,
pesquisar o móvel do desejo,
medir a altura das visões,
analisar os ritos e os gestos.
Em discrepantes olhares e caracteres,
sou conciliador e procuro pactos;
atinjo a necessária síntese
acercando as vontades aos atos.
«Luta até o equilíbrio» é minha divisa,
e é a assinatura meu nome lançado numa seta,
em procura da cruz da harmonia,
indecisa, vacilante, perplexa
equilibrada, ativa:
dependendo de como o ânimo esteja
esse dia.
O progresso cifro em progredir,
em marchar para o objeto perseguido,
o arranjo que pretende por inteiro o existir,
instável contrapeso sucessivo.
Espigas tronchadas, a peripécia
da existencial discórdia
assim mesma se tempera
seguindo pontos de vista posteriores,
simetria das lembranças mais profundas
fazendo-se simples questão de linhas e cores
aromas, pressentimentos e colunas.
Valdepero 1963, Camelford 1982, El Escorial 2017
. Expectativas
Uma em direção a outra,
movimentando-se em espira acelerada
duas estrelas de nêutrons chocam
dando milhares de giros por segundo,
e produzindo, um tempo ínfimo depois,
o consequente buraco negro denso e profundo.
Faz disso um tempinho escasso
só cento e trinta
milhões de anos.
Não posso atrasar a escrita
de meus poemas, neles
há desacordos e dicas
muito urgentes.
Cuidado com essa paz que começa!
Pode ser taimada:
tão propícia como semelha,
se arma
e se rearma nela,
rancor e fogo,
a ominosa e execrável guerra.
Se queres a paz –aconselho-
acaba com as causas da guerra,
fortalece e consolida o sossego,
termina com as injustas diferenças.
Régulo privado de seu cetro,
acentuada exaltação de percepções,
observo minha conduta desde dentro.
Pétala breve conquistada,
ativa
brisa,
propícias asas.
Nas incógnitas que a lógica desvela,
na intuição apoio os convencimentos,
porque os sentidos mentem como regra
e me informam buscando seu proveito.
Somarei, por se não bastasse o já dito,
minha constante suspeita de imaturos erros,
esquecimentos de vulto e desvarios,
que ainda não foram descobertos.
Fixam os livros a memória como os pinos as dunas,
permitem ver do passado sua imagem atenuada
e projetam sobre o hoje a calculada presença póstuma.
Neles leio que a pedra se fez futuro,
que o ouro foi adorado, e a palavra
-meu postremo refúgio-
resultou mil vezes profanada.
Minha visão harmônica do caos,
ordenada pelo comum sentido,
e a evolução do pensamento apoiada nos ensaios,
me ditaram nos ouvidos
um evangelho santo,
credo positivo,
curta relação de mandatos.
Consumirei recursos restauráveis,
mais planta que animal,
calor ou minerais;
capazes de crescer
uma, outra, outra
e outra vez.
Matérias primas a meu alcance,
dos bens que possuo: ferramentas, vestidos, alimentos;
utilizarei o indispensável
libertando o resto.
Volume sobrante, envoltório, casca ou pele,
residuais elementos
epiderme,
aproveitarei os desfeitos.
Cedo tive pensamentos próprios:
de princípios, sensatez e dúvidas,
enchi cofres honrosos.
A metade do homem indócil que me integra,
defende um sim do mais sólido;
e o resto após um não sem retorno se entrincheira.
Do anverso branco até o reverso negro,
minha vontade se encolhe e se dispersa,
compartilhando o eterno drama do Universo.
Aguda espinha,
interior sedoso;
sou contradição,
perseverante paradoxo.
Vivo a heroica, real e diária vida doméstica,
do eu inconstante, da pessoa altiva,
emocional, cândida e romanesca;
afetuosa, plena de preconceitos, agressiva,
servil, soez, venal e incorreta.
E a vida da razão e o pensamento, universal e nivelada,
que tudo o mede e o pesa num momento,
perfeita, lógica e quadrada;
facultada para destruir no julgamento
os firmes pedestais e as estátuas sólidas,
capaz de despir de roupagens alheios
a verdades e mentiras em infernos vizinhos da glória.
Tenho saído à aventura sem mochila,
falto dum amarre que me una ao inerte,
naufragada barca, águia caída,
recordando o exemplo que dão as sementes:
capazes de esperar no deserto, em condições extremas,
da sua própria fecundidade conscientes,
seguras de si mesmas,
a uma sozinha gota de água,
da eternidade inteira
a parte necessária.
Nosso próprio Sol, centro do sistema pequeno
que nos atrai e recusa fazendo possível a existência,
ao transformar todo seu hidrogênio em hélio,
andando o tempo irá modificando sua essência
até ser um gigante vermelho.
Se expandindo mais e mais ardente,
dará fim a seus planetas
sendo eles de todo o processo inocentes.
Mas desastre tão extraordinário
nos permitirá acabar as tarefas pendentes sem pressa
porque ocorrerá dentro de milhares de milhões de anos.
Valladolid, Barcelona, Madrid, 1970
. Pensamento e ação
A vontade sobe ao estrado
e arenga a todo o organismo:
rins, coração e baço,
incitando-lhes a suprir qualquer declínio
para desenvolver o potencial inato.
É preciso mencionar a importância das mãos,
com elas elaboro excelente artesania,
ferramentas, arreios para o gado
e os conformes traços da caligrafia;
enérgicas aceitam compromissos, assinam pactos,
e sedosas desenham a tibieza das caricias.
Sem atingir os extremos do eremita ou o asceta,
dedico algumas horas a meditar meu pensamento;
nem flagelo minhas carnes nem me nutro de ervas,
gozo e sofro acompanhando a meu tempo:
sou um filósofo que avança na névoa.
Com as exceções assumidas,
a beleza da ordem é minha meta,
liberdade distanciada da forçada simetria.
Cabem em meu mundo figuras desiguais:
quadrado, triângulo, circunferência;
todas as formas naturais
as ideadas e suas mesclas;
e das matérias intelectuais,
qualquer ponto de vista me interessa.
Não há que marcar limites ao progresso
para além dos que estimem a experiência,
no dia de manhã, o bem-estar dos diversos;
porque somos um elo da cadeia,
o fio condutor da prudência e do atrevimento,
o fluir do rio e o alimento na despensa
Sou o que lavra a terra e a vazia de riqueza,
quem se submerge até as pérolas e os arrecifes coralinos,
aquele que transforma a matéria prima em novas peças
e o servidor de seus vizinhos.
Cuido o semeado até a sega,
descendo à mina, pesco barbos no rio,
trabalho de sol a sol na telheira;
sofro fome, sede e frio,
e meu corpo resiste nu as doenças:
sou o braceiro desconhecido,
o novo atlante que porta o mundo sobre sua cabeça.
Que signo acunharei nos corações humanos,
que contraste darei ao valor da sua valia,
que afastados limites porei ao terreno parcelado,
que listras traçarei que não dividam;
que som coincidente com o sim em todos os ânimos
inserirei com energia?
Machados de sílex lavrados por gorilas,
azeite para as cinco lâmpadas das virgens néscias,
o segundo coração que o amor do homem precisa,
os magníficos versos do décimo livro da Eneida,
uma cópia a seu tamanho da Capela Sistina;
a contagem de minha vida expressado em derrotas,
luzes extinguidas que marcam ainda o rumo dos navios,
ilusões recebidas pelos filhos e a esposa;
sentimentos azul cobalto confundidos,
datas erradas da recente história,
os cinzentos temores e o panorama proibido,
colmam o espaço destinado à memória.
Dão forma a minha soberbia
alongados estambres amarelos,
orquídeas das mais azuis pétalas,
flexíveis juncos e ilustrativos rododendros.
Me surpreendo
vazio
em cem aspectos;
pálidas facetas dum brilhante mau polido
que encontra, nos outros, complemento:
família, amigos,
companheiros
e contíguos.
Por aceitar os demais tal como são em verdade
e ajudar a que sejam como anseiam ser,
se desvive minha débil vontade
arrastando meu volúvel proceder;
por formar um critério inteiramente próprio
e procurar a síntese constante e o equilíbrio fiel.
A aparelhada mula e os pardais livres
o céu inconsequente e a sacrificada terra:
com o afetuoso coração preservo minha origem
com a reflexiva e equânime cabeça.
Palencia, Valladolid, París, El Escorial
INTEMPÉRIE
. Dilúvio na resseca terra da fome
Com uma pena de cálamo partido,
o homem desguarnecido se acastela,
pó em água diluído,
tinta viscosa surgida da testa.
É uma pluma somente
e a branca superfície do papel
em seta, em adaga a converte;
a palavra que perfilo é um ipê
lançado contra o céu inexpugnável e inclemente,
para desaguar, face e invés,
seus transbordantes recipientes.
Vão sendo as seis e o ativo povo
-do arraial alçado num córrego ressequido-
em círculos de pedra aviva o fogo,
e com a calma de quem ignora os perigos,
apressa lidas diferidas pelo breve ócio
ou desprega lembranças dos tempos idos.
Placas de lata formam tetos e paredes,
entulhos de algum derrubo, tabelas rompidas,
frágil refúgio destinado a proteger da intempérie.
O vento avisa com seu assobio ralo,
um cheiro de crisântemo vivo
vem do Norte carregado de presságios:
calaram-se os grilos
e os pardais agitados
revolteiam em círculo.
Recolhe raios o sol, embainha sua soberba,
retrocede e foge dos horizontes nublados
embutidos em armaduras pretas,
guerreiros sobre bíblicos cavalos
que manifestam uma cólera densa.
Urgidas galopadas das pernas,
a primeira gota inaugura o desconcerto,
cauta emissária das companheiras,
as que ocultam o sol fátuo e incerto
esperando instruções mais concretas.
Chove a negrura que a perspectiva afasta,
nas lindes se enleiam linhas de chegada e partida,
piscando resplendores se agita o deus da borrasca
visos perversos que agigantam as vistas,
numa tarde de verão bem bastarda.
Presto o altar, a oblação desconhece os desígnios;
procissões de nuvens chegam ao lugar dos fatos
seguindo a ordem imutável dos avisos.
As temperaturas elevadas,
necessitadas de paciência,
perfuram a barreira da exígua enramada;
os indómitos vales desfocados centelham
e desde o alto das nuvens altas
desordenadamente desce a tragédia.
Descobre o olho torvo em solitária cavalgada,
o temor oculto dos campos às ingratas sementeiras;
neste lugar o mau augúrio aguarda,
em toda parte a ferida fica aberta,
por ali chega morte acaçapada,
suspeitada e, sem embargo, manifesta.
As gotas compõem milhões dilatados
e uma sozinha é vida no deserto,
adição do mar não desbordado;
uma gota não é perigo verdadeiro,
nem cem juntas, nem mil vezes um vaso.
Com quatro nuvens irritadas se forma uma tormenta,
três tormentas cabem em um vale,
são três os vales convergentes, e mais de quarenta
as nuvens que acumula a nuvem resultante.
Toneladas de água vai ressoprando a galerna,
ingente quantidade, mares desprendidos da altura,
uma fortuna se cai no lugar da carência:
terra resseca e esquartejada, balbuciante agricultura,
feijões, tubérculos, centeio, aveia
erva agostada e murcha,
alimento que salva da morte verdadeira
protegendo da fome uma temporada curta.
Apedrejam as nuvens com ouro a puna e a savana,
centos de milhões de onças caem no absorvente solo,
valioso pasto para milhares de vacas
que morreriam num jejum novo.
Água vai! Exclama o céu perto da porta,
e a nuvem total, o universo inteiro, as líquidas esferas,
abrem as comportas e em menos duma hora
cai destrutora a água chegada de todos os planetas.
Os pés não encontram solo, se dissolve a terra,
todo é líquido solto e sua força de arrasto,
arrasta rolando as roladas pedras.
Os ramos se desgalham de choupos e louveiras
troncham-se os caules das plantas,
o deus da morte exige um centenar de vítimas
e a dor das sobrevivências rasgadas.
Há famílias abaixo, pessoas de todas as idades,
borbotões de sensibilidade e de ternura,
cachorros e gatos em plena liberdade,
utensílios, úteis de pesca, ferramentas rústicas,
amor à Natureza muito grande.
Se volta contra o homem o enxoval diário,
arrasa arrasado e é espada;
é martelo, é estaca, é maço;
é machado violento, é cortante navalha.
Resistem os valentes esbanjando brios
e agonizam em tentativa vã de minorar o desamparo
impelindo os mortos aos vivos
enquanto escapam os covardes ficando a salvo.
Troca-se a terra em pegajoso limo,
formam dique as lenhas e as pedras,
fixação de mares bem nutridos;
e num instante que os fados desprezam
escapam os desbordantes fluidos.
Exaltados relinchos de cavalo
das gargantas irrompem fugitivos,
bramidos de touro ensanguentado
e desgarradores gritos
nascidos do sofrimento desumano
elevam sua queixa até o divino.
É angustiosa a impotência,
e depois do instante eterno que dura a agonia,
insultam os feridos a quem executa a sentença.
A morte forma feixes de corpos:
mãos unidas às mãos,
braços suspendidos dos pescoços,
rostos pegados aos lábios,
dentes mordendo o vigor afetuoso
do amor apaixonado.
São alicerces os troncos em carne viva abertos,
suportando o peso dos muros derrubados,
dos precipitados tetos.
As lascas, incisivas como alfanjes,
e as árvores arrancadas da terra mãe,
são armas para o descomunal gigante
que vomita a água dos sete mares
sobre pessoas acostumadas ao abuso do grande.
Quando o céu aclara sua cor e o temporal decresce,
oferecendo evidências ficam os despojos:
cabeças aplastadas por pedras inocentes,
extremidades presas debaixo dos escombros,
ventres inchados sobre desnutridos ventres,
corpos oprimidos cobertos de lodo.
O lodo, o lodo, o lodo detido;
o lodo desprende de seu seio improvisado,
a expectativa de encontrar algum respiro
e o fedor dos restos demudados.
Os cadáveres descobertos pela água,
são empurrados rio abaixo,
até o espaço que acolhe na enseada,
o barro e a madeira, os calhaus rolados.
O amanhecer acorda destruído:
a batalha desigual -só um bando-
tem deixado um esplendor despido,
coberto por membros descarnados,
de impossível retorno aos caminhos.
Nos morros inclinados, nos rochedos,
nas sumidas adjacências,
nos álveos lisos dos rios secos,
alçam os párias da terra,
seus efêmeros acampamentos,
as frágeis vivendas.
E o céu castiga
sua extrema pobreza
e a ousadia.
Diversos lugares desde o ano 2011
ECONOMICISMO
. O preço e as coisas
Antigamente, o homem era
antes de tudo
sua ascendência.
A tribo era pátria, família, amparo e despensa.
Eram comuns a propriedade e os projetos,
amigos e inimigos, o trabalho e a colheita.
Se compartilhavam sentimentos
tristeza e alegria,
e o individual não se mostrava aberto,
apenas florescia.
Com o tempo a tribo se foi diluindo,
a bonança permitiu às pessoas
mostrar o personagem escondido.
Pessoa e personagem se fizeram gente entre as outras,
e a gente descobriu, inventou, modificou,
pôs preço às coisas.
Quando tiremos o preço das coisas
a gente sofrerá como se lhe tirassem as coisas
porque não sabe separar as coisas
do preço das coisas.
Quando tiremos o preço das coisas,
a gente albergará receio e dúvida
em frente das realidades novas,
pois apreende na primeira infância
– saber sequestrador da candidez mais valiosa –
que antes ou depois todo se paga.
E se, bem visível na etiqueta,
não se mostra destacada a valia,
escrita em caracteres claros,
com sedutoras cifras,
se deve a que o preço é alto.
Quando tiremos o preço das coisas
e as coisas se mostrem sem vestidura,
a gente não reconhecerá as coisas,
porque sabe que o preço é para as coisas
como a forma, a cor, o cheiro ou a textura
que devem ter todas as coisas.
Quando tiremos o preço das coisas
a gente ignorará a ordem das coisas,
equivocará a comparação entre coisas
e será um caos o universo das coisas
para a gente que ordena as coisas
pelo preço que têm as coisas.
Mas se queremos que as pessoas
feitas gente podam lograr a muda
da sua maneira de ver as coisas
e avaliem atributos como a beleza nua
a utilidade prática,
o som do vento ao abraçar a superfície muda
a doçura das últimas camadas
a brandura
a natureza da substância originária,
seu valor intrínseco
sua duração, resistência e força
devemos tirar o preço
que um dia se pôs às coisas.
Quando logremos tirar o preço das coisas
– acontecimento histórico memorável –
do indivíduo diluído na gente, renascerá a pessoa
coração animado de sístoles e diástoles.
Madrid Mercado do Rastro 1967
. A economia de mercado
Crosta, manto e núcleo, meridianos e paralelos,
translação e rotação, movimentos pares e impares
a esfera vai perfeiçoando a sua rotina
entre instáveis equilíbrios e jogos malabares.
Tendo recorrido a Terra em elipse ou em círculo
quatro mil e quinhentos milhões de anos,
não se pode impedir que a economia de mercado,
do dinheiro canibal suave eufemismo,
soltando a nosso planeta do atracadouro espacial,
o converta em marioneta de seu dedo,
novo centro do giro sem final.
Com o seu influxo, a economia de mercado
originou a deriva dos continentes;
com o seu único influxo move, a medidos intervalos,
as placas tectónicas; e com o seu influxo onipotente
aviva vulcões e sismos, aparentes flagelos espontâneos
que a economia de mercado, imparável e insistente,
aproveita para extrair um bom bocado.
Nos tempos de Pangeia o Algarve acariciava
as ilhotas de Florida,
e o rochedo de Ifach se adentrava
nas terras virgens
da Guiné africana.
A união fazia fortes todos os espaços,
e nada podia contra eles
a infatigável economia de mercado.
Foi então quando, perseguindo soluções,
cunhou a tão repetida sentença:
«separa e vencerás»,
atuando em consequência.
Empuxão, arrasto e muito afinco
forças centrípetas e centrífugas:
a empurrões ciclópicos míticos
conseguiu avançar separando
um trás outro, sem concerto estabelecido
os territórios irmanados.
E há mais, muito mais: nas noites escuras do trópico,
se servindo de encadeados ilusos, a economia
de mercado arranca o magma do puro núcleo,
e o saca fora para vendê-lo de madrugada
em armazéns clandestinos bem ocultos
ao melhor oferente sem mais nada.
A economia de mercado vai a toda pressa,
e acelera o passo do Universo;
prontidão, diligencia, impaciência
de modo que, quanto ocorria em milénios,
sim danos para as pessoas serenas
agora ocorre em séculos.
Se produzem assim múltiplos desequilíbrios
que a economia de mercado
assenta a bom preço e ao vivo.
Ocorre que o destinado a morrer morre,
alimentando outras vidas,
a sua vez pasto, sem consciência ou conscientes,
da economia de mercado y as malfeitorias,
algumas de domínio público e voz corrente,
e outras ignoradas por desconhecidas:
silêncio de informados inermes
freados pela cobardia.
Genebra 1990
. Defensa dos preços livres
Ferramentas do acumulador, Midas moderno,
para se enriquecer ainda mais, se fora possível,
sois imperativos, admirados preços,
certamente livres de qualquer código,
legalmente não tendes teto,
podeis chegar ao topo
alcançando o alto do firmamento.
Sois pequenos no campo agricultor:
alguns sacos de lentilhas,
laranjas, girassol, sementes, maças, arroz,
leite de cabra, ovelha ou vaca, colheita reduzida.
Insuficientes sois verdadeiramente
em dolorosas ocasiões y diversas horas,
para pagar o suor original da gente
de braços fortes e cabeça pensadora.
Exíguos, também, no ateliê de trabalhos elementais
albergue de ideias, afazeres e ilusão
feitos à mão, manuais,
mãos e cérebro completando sua função.
Não obstante, vocês, preços livres, produzindo dor
cresceis e cresceis nos enredos do itinerário
que leva à loja e ao consumidor.
Nasceis cêntimos em qualquer atividade humana,
mas quando a tecnologia participa no processo
filha e servidora das grandes corporações sem alma,
então vos multiplicam por cem ou mil,
tanto quanto aceite a necessidade humana
seja certa, real e verdadeira
ou simplesmente suspeitada:
por exemplo as vacinas contra a pandemia,
armas ditas defensivas
e as energias fósseis
tão prejudiciais para a vida.
Nessas ocasiões, cada vez mais frequentes,
ao final de trajeto tão ziguezagueante
alcançais orgulhosos as altas nuvens
e as estrelas distantes.
Vocês, preços livres, tão difamados
sois inocentes do enorme estrago produzido
os acumuladores são os culpáveis exatos.
2023 Agora em quase todo lugar
. Concórdia de classes
Hic et nunc
Corpo de pão e leite, cabeça de bronze:
sinos fundidos
com canhões.
Ah! Minha Espanha, minha terna e impetuosa Espanha
paulatina síntese atroz deste Planeta,
lugar onde ao nascer estive à mercê da Descarnada
e talvez morra hoje de dor y de impotência.
Exposição
Era quinta-feira, dia catorze, na manhãzinha,
de repente, a través de informados habitantes
conhecemos a notícia
que assegurava a possível imortalidade
de ricos e ricas.
Assim soubemos que, alcançando em euros
os cem milhões e pico
de capital uno o diverso,
tinha decidido Deus que os ricos mais ricos
viveram pelos séculos dos séculos.
Eles contribuem mudando
de simples maneira
de fato
sem demonstrações de festa
a justiça distributiva
por uma nova inteireza
também justiça
que logo se nomeia
justiça cumulativa.
Uma ligeira mudança de palavra
que da carta de natureza
à função contrária.
Sentimos, e merece ser destacado,
o maior contentamento
de nossa pobre vida de pobres natos,
contribuintes netos
do enriquecimento crescente e bem crescido
dos permanentemente insatisfeitos
os considerados autênticos ricos.
Alegria sim, muita, inenarrável
-idosos, adultos e meninos-
pois ao fim, nosso esforço íntegro e constante:
um dia após de outro, comendo o mínimo
para enriquecê-los de modo culminante,
cumpriu seu elevado objetivo.
Ficava bem claro,
não éramos tão inúteis.
como nos fez crer seu descaro.
Crise
Houve multidão de comentários
e diversas especulações;
grande empenho interessado
nas pessoas maiores,
pouco, muito pouco enfado
entre os mais jovens.
Inclusive se falou da existência
de letra pequena no acordo,
possível intervenção da experiencia
do intrigante Demônio.
Negociação a dois: Céu e Inferno
que acrescentasse condições críticas,
difíceis de cumprir, por exemplo:
que estivesse limitado acima.
Só a maneira de modelo:
quando os milhões atingidos
sejam cento e vinte, vinte e cento
pelo capital do rico,
o direito da imortalidade recebido e aceito
se perdesse no início.
Imaginando o apressado
processo de enriquecimento
e o conseguinte freado
– os sofismas: essas esmolas repentinas
carecentes de continuidade,
e a volta ao crescimento já sem correria,
com a apropriada sobriedade –
soltávamos uma risada muito ativa.
Sossego e presentes
que não devem ser excessivos,
já que se trata de fazer permanente
a difícil harmonia, o equilíbrio;
pois si a fortuna descende
de cem milhões limpos
a morte levará os desafortunados ricos
a seu covil estreito e frio.
Acostumados a ter sofrido
um averno de angústia pelos altibaixos
de nossa subsistência de exíguos;
lamentamos ao instante, os necessitados,
tão insólita situação, pois nela vimos
o insofrível tártaro
incorporado na ansiosa vivência dos ricos.
Desenlace
Por se resultara correto em sua essência
o rumor difundido,
muitos acumuladores sem paciência
diminuíram seu extraordinário apetito
adotando o meu lema:
«Luta até o equilíbrio».
El Escorial 2017
. O grande grito (Desequilíbrio insustentável)
«Nos querem emocionais para nos dominar,
mas nos terão pensadores resistindo.» (PSdeJ)
Os inícios
Gases, líquido, sólido
espaço-tempo,
ar, água, terra, fogo.
O hoje tem uma lenda
calculada em treze mil setecentos
e setenta
milhões de anos completos.
Rotação e translação iam
os mundos a seu devido ritmo
satisfeitos da alcançada rotina
atraentes e atraídos
cantando a universal cantiga
como estava previsto.
Matéria e energia,
em sua cópula engendraram,
sístoles e diástoles,
o inicial sopro de vida.
As causas
Emoção e lógica caminhavam juntas
–humanas complementárias faculdades–
unidas sempre por vales e planuras,
e a inteligência se pensava invulnerável.
Às vezes o pensamento parecia tomar a dianteira,
até que o sentimento avançava decidido
alcançando uma vantagem manifesta
que tentava manter como objetivo.
Assim se produziram os tristes desafios,
começaram irreduzíveis as pendências,
teve fim o necessário equilíbrio
alimentando-se o ódio com as guerras.
O vão ganhou protagonismo nos medíocres,
cresceram os emocionais entre os indivíduos
começou o transvase do comum para os acumuladores
e os pensadores foram doravante perseguidos.
As consequências
Meu grito é um grito de desassossego
macho erguido e fêmea valorosa
cidade ou campo aberto
ruas, praças e rondas
vale, ladeira ou cerro
as mãos em megafone sobre a boca.
Meu grito é o grito do dia e da noite
neste pequeno globo tão errado
oito mil milhões de vozes
fundidas em sonoro abraço.
Meu grito é o rugido do tigre e a baleia
de vulcões e sismos
o grito da lava interna,
do vento que inflama as velas dos navios
o desgarrador alarido do furacão e a galerna.
Meu grito é o grito da massa vegetal
grito de araucária, choupo e catuaba,
dos cactos do deserto e o mangue do mangal;
um coro enorme que eleva
sua voz descomunal.
Meu grito é o grito da terra estável
e do líquido mar,
das nuvens cambiantes
e o azul desigual,
a queixa suave
e o bramido estelar.
Meu grito é o grito animal
o grito dos vegetais
e das pedras sem lavrar.
Planetas habitados e infecundos
meu grito brota do desespero universal
exigindo ao suposto demiurgo
sem novas perífrases nem desculpas vãs,
que aclare se o domínio do privado sobre o público
goza do seu apoio ou tem perto o final.
Torre da homenagem, castelo de Valdepero 2011
ITINERÂNCIA
. O dilatado Chang Jiang
A delicada fugacidade da arte,
a experiência que abastece à filosofia
e o ritual religioso da natureza respeitada
convertem a Shangai em ponto de partida.
Tentamos subir pelo Chang Jiang contracorrente
– apaixonados, mitológicos, gigantes –
decididos a atingir a primitiva fonte.
Deixamos o refúgio cálido do porto
– capulho de seda, útero de larvas –
aos ventos fechado, à esperança exposto.
A Torre do Tambor de Nanjing,
a Púrpura e o Ouro do Outeiro alto,
conquistam a mirada surpreendida
dos passageiros do barco.
Recebe-nos Wuhu hospitalário,
e duas semanas depois,
as três cidades de Wuhan,
lago do Leste e as Colinas,
pavilhão do Poema, memória de Qu Yuan.
Translada a ponte sobre nossas cabeças
a cem mil operários
em cem mil bicicletas.
Que rápida parece ao lado dos juncos a vela
a pesada barca de vapor que nos mostra
Chongqing entre a névoa,
onde comemos Hot Pot,
douta preparação de sua cozinha
em conjunção perfeita de cheiros e sabores
cores e textura que leva à delícia.
Pisemos forte o lamaçal!
Que treme a nosso passo o Rei dos Dragões!
Profundas pegadas de cavalo, de peludos yaks,
redemoinhos das Três Gargantas
desfiladeiros insondáveis, pântano e lodaçal.
Ribeira desbordante de gentio atarefado
canais cobertos de lotos perenes
fauna abundante de búfalos e gamos
asnos selvagens e leopardos das neves,
gazelas de Mongólia, ursos pardos
antílopes e multidão de peixes.
O ar se empobrece à medida que subimos
freiam nosso avanço a ausência de veredas
os inóspitos glaciares e o gelo movediço.
Advertimos imprecisa a fronteira
entre a dura realidade e a suave fantasia
o limite delgado da história e a lenda.
Contam os pastores tibetanos
que um sólido terneiro de considerável alçada,
desceu lentamente dos céus ufanos;
e a água pura que de seu nariz brotava
-um arroio de caudal minúsculo-
deu ao Chang Jiang a corrente originaria
e os seis mil trezentos quilómetros de curso.
Descobrimos Janggaintirug: glaciar de congelada fantasia,
cume Gela Daingdong, pastor da lenda,
o manancial, a fonte que a corrente inicia
onde os deuses bebem sua velhice esplêndida
facilitando a seu rosto imarcescível a harmonia.
Montanhas, vales, altas planícies;
neves perpétuas e permanente gelo
sólida coluna, altivo Tibet,
lugar em que se assenta o firmamento,
morada perpétua da divindade
onde os rios tem seu começo.
Lhasa (Tibet)
. A mar oceânea
Primeiro o ar, o vento, o espírito,
depois a água, o mar, a líquida planura;
em terra do Oceano, pescador de Alotau,
o homem foi papua.
Forte, destro, lúcido, magnânimo
alinhou-se em tribos inimigas
e vieram os comerciantes de escravos.
O mar trouxe o bom,
e também o mau.
Muralha, mar, és muralha;
és barreira e és ponte,
tua união consumada com a terra
tão adentro, tão profundo, tantas vezes
produziu o germe e a essência,
primeira raiz do vivente.
Escondes em tuas arcas maravilhas
todas as feituras e cores existentes
qualquer forma de vida.
Alaridos famintos de amizades,
insone de amores descumpridos,
em leito de facas tempestades
queixas de solidão no teu retiro
ondas altas, braços de gigante.
Estás sozinho, mar, desamparado,
te invadem comerciantes e guerreiros
a habitar-te o homem não se arrisca
ouro e prata naufragam em teu seio.
Sobre ti jamais galoparão potrinhos,
não verás abelhas polinizando flores
nem aves do paraíso adornando remoinhos.
Darias cem vezes a linha horizontal de teu horizonte
por banhar inclinações onde se põe o sol mortiço,
a metade dos ventos que te sopram
por curvar meandros como o rio
vendo florescer o inhame glauco
palmeirais de sagu,
a mandioca dos campos;
incluso a beleza da vela enchida
cheia do sopro que a empurra, porque os gamos
comessem erva das tuas pradarias ricas
ou por sentir os singelos cantos
das aves surpreendidas
palavras das mil línguas papuas a teu lado.
Prefiro-te indeciso, mar.
Titubeante, instável, movediço;
assim te precisam o vento,
a chuva, a terra e o inconsistente equilíbrio.
Alotau (Nova Guinea)
. África
«Os Makondes
na Costa Índica terão sua morada,
para os Sukumas reservei o Victoria imenso
no Nordeste montanhoso se situarão os Sambas
os Nyamwezis ocuparão o Centro,
viverão os Mbugwes contíguos ao Maynara
e aos Chaggas corresponde o Uhuru recio».
«Compartilharão os peixes com a águia que pesca,
a caça com as vigilantes rapaces,
e com as girafas as folhas cimeiras
das elevadas árvores;
os pastos com gazelas, antílopes e zebras
a água com todas as espécies
e respeitando o que lhes rodeia
viverão em harmonia permanente».
«Culmina minha obra a regular cadencia
que ordena os ciclos do Sol e da Lua,
define da semeadura a época
e distribui os calores e as chuvas
propiciando o crescimento das ervas».
Aliado do búfalo, do leão e o elefante,
o pastor Massai da planície extensa,
amigo da frondosa árvore banto,
de zulus, árabes e persas,
leva a mensagem de Ngai pela savana
escutando os bramidos do amor e as respostas,
carniceiros e vítimas caladas.
Entre o búfalo e o gnu abrevam vacas,
cabras, ovelhas;
ao lado de crocodilos e hipopótamos,
junto a oryx, topis, javalis, macacos, impalas, hienas.
Mas o proceder malvado dos homens egoístas
ladrões da natureza inerme
destrói pouco a pouco a harmonia.
Fome, guerra, peste e seca,
como folhas de erva segam vidas
e por velhos fuzis e umas poucas moedas
compram as enormes riquezas dormidas.
Que te fizeram! África.
E que te fazem!
Pois já não te ficam lágrimas
e já não te fica sangue.
Nairobi (Quênia)
.Roma
Rómulo, confesso fratricida,
das aleatórias formas do voo dos pássaros escuros
recebe uma glória imerecida.
Transgressor de leis humanas e divinas
– especificamente, suas mais recentes normas –
sacrifica no altar cruento e em singular comida
aos bois que o termo da cidade acordam,
raptando milhares de sabinas
para que vagabundos semeadores de ventres
gerem nelas uma plebe aderida,
se convertendo a sua morte em deus Quirino
adorado por romanos,
venerado por sabinos.
Percorro Roma, tão afamada,
e nas colinas salpicadas de gloriosos indícios
espanto com firmeza gatos de infrequente talha,
descendentes de leões e tigres dos Circos.
Vigiam relíquias, despojos, sedimentos
estátuas, panteões, obeliscos
obras públicas e fastuosos monumentos
erigidos ao ditado de insignes ditadores:
adustos pontífices,
montarazes imperadores.
Quando cruzo a arborizada Piazza da República
o céu se cobre de estorninhos escuros
que em seu voo agrupado compõem volúveis figuras:
sobre o azul três negros escudos
protegem sendas torres custodias
e três cavaleiros equipados de armadura
cavalgando potros de Anatólia
as defesas derrubam na altura
com o extremo endurecido de sua lança impetuosa.
A imaginação relaciona ao acaso os palcos
e ao ver as figuras chegar a desfiguras
sugere Lisboa um vinte e seis de abril, quando
um jovem mendigo,
ao pé dum rei de bronze a cavalo
qualquer lugar tranquilo
limpava suas unhas com dentado bisturi;
ou me translada a Genebra perto do lago
onde vivi cem dias esplendentes que se fizeram mil.
Centuriões e bispos,
os valorosos exércitos imperiais
acumulam um cansaço de séculos;
elevam a espada ou a cruz sobre proclamas
– conquistadores divinos –
e entram feros nos bairros
libertando as almas de milhares de corpos desnutridos
demasiado débeis para correr em retirada
exemplos forçados de heroísmo.
Depois de dois milénios de firme avanço cívico,
se sustenta o desenho de sempre:
decretam os patrícios,
os plebeus obedecem.
E de ter vencido Remo
não seria diferente.
Roma 23 dezembro 2009
. Minha terra
As propícias ondas celebradas sejam,
abertas ao talha-mar de roble,
e os ventos que inflamaram as velas
de baixéis egeus, mineiros do cobre
que até aqui vieram.
Nos sulcos abertos na terra parda
nas cinzentas ladeiras,
nos pedregosos páramos
e em arroios de férteis ribeiras,
se misturaram bem misturados
os iberos com os celtas.
Aqui gregos e fenícios,
aqui romanos em armas,
visigodos e árabes
se misturaram.
Aqui o sangue, aqui a medula,
aqui as células nervosas
e as chaves da herança,
explicam porque há tantas
e tão subtis diferenças.
Com meu apelido catalão,
de origem andaluz, sou castelhano;
e Castela não seria sem astures
galegos, leoneses, bascos,
sem os moçárabes do sul
que repovoaram o Douro devastado.
No fosso, pedra;
resistente adobe dos alicerces ao telhado,
e acima a argila cozida das telhas
presentes dos árabes expulsados.
Conquistadores, vieram pelo nosso,
ficaram um tempo,
e nos deixaram seu todo.
Balanço equilibrado,
de todos aprendemos,
a todos ensinamos.
América, América, América minha,
ouro e sangue
em troca da língua.
Língua ibera, antes grega e latina,
língua estendida que evolui e perdura,
«que boa língua herdamos dos conquistadores torvos»
verso escrito com as palavras castelhanas de Neruda.
1 março, Terra de Campos e O Cerrato, eu sempre neles
. O saqueio da Grécia
Levanta o voo a rainha das aves
estende majestática suas asas
e consegue o céu a grande velocidade
alçando-me em suas garras.
Com a mirada abarco o esplendor heleno:
história, geografia, mito;
resumido nas sete colunas
do templo de Apolo em Corinto.
Memória das pedras por Mirón despidas
Praxíteles, o velho Policleto,
Fidias e Kresilas.
Liberdade de ação e pensamento,
democrática semente muito antiga.
Coexistência do terrenal com o celeste
Lebaida e monte Olimpo, Alfeo e Olimpia,
arroio Ismenos, colina de Cadmeia
libertando-me, o águia,
em Píndos, com suavidade, se assenta.
De pão terno é o aroma suave que desprende
Ioannina nua na hora do banho,
recostada e lânguida, os pés
nas sombreadas águas do lago,
disperso o cabelo,
apaixonando
aos ditosos que Ípiros caminham,
lhes mostrando a cidadela e os bordados
cúpulas das mesquitas, esbeltos minaretes
residências rodeadas de jardins
plátanos, ciprestes.
Esposa prisioneira no harém de Alí Bajá,
para libertá-la do tirano
dou meu braço jovem,
ao serviço da cruzada ponho meu espírito romântico.
A matança de Quios
cheia de indignação meu ânimo
a destruição de Missolonghi inflama de raiva meu peito,
vos acompanho amigos na batalha
que impedirá a compra deste país ao varejo.
O disseminado mundo grego reage
recordando o esforço de Milcíades, Temístocles, Leónidas,
de Epaminondas e Trasíbulo,
em memória de Maratón e as Termópilas.
Com Byron na palavra e nos feitos, com Shelley avanço.
Ioannina libertada beija a bochecha minha,
vou com Müller da mão,
com Victor Hugo, Lamartine,
e repleto de entusiasmo
– oráculo em Dodona –
auguro perpetuidade ao povo renovado
que recebe apoios tais, tantos e tão convencidos
e à cultura que conta
com tantos e tais paladinos.
Ioannina (Grécia)
AMOR, PILAR DO UNIVERSO
. Encontro
Eu era apenas uma ilha
e ela uma ilha era.
Ela ilha pronta a abrir-se
e eu ilha muito aberta.
Eu uma ilha agitada
e ela uma ilha inquieta.
Era Amor quem se acercava
com o carcás e as setas,
e logrou que nos amássemos
ao superar a primavera.
Valdepero,1962
. A vida, amanhecendo
És Amor um potro selvagem, uma catarata
de queda profunda, um vespeiro,
um gatinho manso,
um arroio pequeno.
E tudo isso sucede
no mesmo momento.
São tuas carícias como pontes,
como infinitos caminhos;
são como espelhos,
como espelhos transparentes tuas ausências;
são como plumas,
como plumas etéreas teus silêncios;
são de chumbo candente tuas feridas,
cicatrizes curtidas do recordo.
Bem-estar lúcido e torpe,
jubiloso dor,
horizonte detrás do horizonte,
manancial de dita e aflição;
mágica palavra:
Amor.
Em minha noite te sonho azul e fogo,
amor de amor apaixonado
em minha noite te sonho,
diamante encastrado.
Valdepero, 1963
. Tu, sempre tu
Joelho em terra te vi na fonte bebendo a água,
tigela impossível
das mãos cálidas;
te achei de novo sentada em corro com as vizinhas
quando absorta bordavas
o enxoval de noiva na entardecida;
voltei a encontrar-te na festa alegre da patroa
e dançamos sem repouso
até a alva rosa.
Um verão alto, coalhado de colheita,
a cesta da merenda trazias sob o braço
quando o sol agonizava na vereda.
Te pensei a nota musical remate do canto
o verso que faltava ao poema,
a pincelada valente que concluía o quadro.
Eu era o lavrador, o filósofo, o esteta,
o músico, o pintor, o vate inspirado,
e procurava sem trégua.
Trombetas, tambores, sinos;
da casa de pedra chegavas, mulher,
enchendo os meus vazios.
Palencia e Valdepero 1962
. Tu, meu presente, meu futuro
Sobre as pegadas ténues de teus pés nus na praia
sobre a branca espuma
que borbulha a testa das ondas quando te banhas;
sobre a suave brisa e o dócil vento
que beijam a harmonia da tua cara;
sobre a eternidade de teu sonho
sobre o eco azul de tuas palavras
sobre nosso amor antigo e novo
quero edificar
firme o vindouro.
Península de Troia,1970
. Adolescência
Naquele verão dos dezesseis anos
durante as festas da Virgem
entrávamos e entrávamos
ao
trem
da
bruxa
para beijarmos.
No final de agosto
nos faziam muita graça
a bruxa, o fantasma, o morto
e até a vida recém começada.
Palencia, 1962
. Ela no meu caminho
Rapaz imberbe e espantadiço
perseguiam meus olhos sua face
um dia e outro dia à porta da casa
um lugar e outro às seis da tarde.
Olhou-me entre curioso e encrespado,
assim que sacando forças de fraqueza
abri meu coração apaixonado.
Um pedestal situei baixo seus pés
a converti em estátua grega ou romana
mas caiu sobre meu coração todo desdém.
Naveguei mares, atravessei desertos
estendi guerras contra inimigos ignotos
e cansado insistir sem resultado me retirei aos cerros
fixando minha residência numa gruta de raposos.
Comi raízes, bebi água encharcada
e vendo a grandiosidade do céu estrelado
achei a verdadeira calma;
de modo que o proceder calado
me deu a melhor fama.
Numa procissão de peregrinos,
tão formosa como a primeira amanhecida
sem me conhecer se acercou com os vizinhos.
Foi vê-la e recordar a antiga,
reconhecê-la e acordar uma tormenta de raios
e trovões que dormia.
Sua presença rompeu meu sossego
minha vontade sem força
voltando a mim o impulsivo desejo
a modo de centelha ardente e luminosa.
O eremita santo que era eu a seus olhos
foi aceito pela sua bondade
e ficou a meu lado numa gruta de lobos
prometendo a Deus silêncio e castidade.
Valladolid e Barcelona 1969
. Entardecer na praia
A primeira gota de chuva foi um floco de neve
o frio teceu meu sonho gris na neblina
era um inverno ainda leve
estava eu só e tremia.
Me tem a noite encurralado
fortemente atado e não me solta;
me tem cercado,
entre as cordas,
sitiado pela memória dos fatos
jasmim, pedra e cobra.
Quando brotam de teus tristes olhos
as abundantes lágrimas
dos frequentes choros,
já são todas leis e máximas
torrente, rio, arroio
Não posso improvisar uma barreira própria
dias de ira
vão a meu coração tortuosas
sombras líquidas
e o afogam.
Minha fêmea amada muito compreensiva
doce, relevante, apaixonada,
teu futuro: fecunda idade e pessoa ativa:
dolorido sentirei no monte Abantos
em meu espelho refletido
aurícula e lábios
último destino.
Qualquer ferro, qualquer fogo
qualquer calcada profunda de cavalo
em qualquer deserto de qualquer globo
no último inferno condenado
serão por mim, em teu lugar, sofridos
altos ciprestes afiados
sem suspiros.
Palma de Mallorca, 1983
. Amar, amar, amar
Amar para viver ativo,
considerando o amor fonte de vida;
ou viver para amar, sendo o amor o objetivo;
não acertava eu tratando de resolver a disjuntiva.
Ante essa dúvida do todo irresolúvel,
perdendo um tempo do que não andava sobrado,
em tão enredosa encruzilhada me detive.
A minha idade provecta
no horizonte unem-se Tânatos e Eros,
opostos só em aparência.
A apetecível e dificultosa vida,
o desconcertante e prodigioso amor
e a morte tão difamada e tão temida;
formam os três lados do triângulo existencial,
os três ângulos, as três bissetrizes
aos que o homem costuma a se aferrar.
O estímulo foi antes que a nada primigênia,
na intrigante e aleatória formação da Natureza.
O estímulo vácuo,
e todo o demais, depois:
as rochas e as árvores, as palavras e os fatos.
E aí, nessa nossa terra
copiosamente abonada da excitação,
minha fêmea humana de formosura plena,
destaca teu erotismo em inteira floração.
Aí brilhas, minha marinheira intrépida,
resplandeces aí, minha fêmea impudica,
no estímulo flamejas,
minha adorada mulher madura.
Tua paixão agita o almanaque,
põe nos dias em fila e os faz correr a teu ritmo,
estimula minha miragem,
e acelera os processos evolutivos.
Comove hormonas e sentimentos,
até o ponto de ruptura força à vontade
e desenha, ajustada à intensidade dos desejos,
uma nova escala para medir a felicidade.
Somas essas habilidosas práticas, já fortalecidas,
às faculdades cedidas pela natureza:
a sinceridade, a fortaleza, a fantasia
o desejo de superação, a inteligência,
a capacidade de luta, e a facilidade criativa.
És a brisa no deserto,
o orvalho no deserto,
a água no deserto,
o palmeiral no deserto.
És o oásis estendido no deserto,
e o deserto convertido
num enorme oásis aberto.
Semeiam minhas palavras teus ouvidos,
fêmea ativa e pressurosa, minha amada intemporal,
crepúsculos cálidos ou frios.
Essenciais e íntimos momentos
em que a luz do farol a estância ilumina
e o relógio do campanário rompe o silêncio
para dar as doze da noite a médio dia.
Oh! minha provisora de tâmaras e leite de camela,
de sombra fresca e água cristalina;
oh! minha poetisa aberta,
minha doce flautista,
sem ti, que triste seria a Terra,
que feia a vida.
Barcelona e Palma de Mallorca 2010
. Naufrágio
Distanciada dos alcantilados espumantes
minha barca navegava na bonança;
eu içava as redes enchidas
e ao leme ia a amada.
Escureceu o dia de improviso:
nuvens de colérica negrura
o céu azul foram cobrindo.
E com a força dum milhar de terramotos
arrojaram à amura de bombordo
um empurrão ciclópico:
água, violência, fulgor, negrura: isso era todo.
Opostos os deuses a minha felicidade terrena
descarregaram estocadas de gigante,
na sacudida fatal duma tormenta.
Aceitou a realidade minha reflexiva testa
desmedidos embates, marteladas furibundas,
inúmeras torturas resistiu espantada a consciência.
Na superfície tremeram as ondas mais profundas
forças desgarradas da contraditória natureza,
e o mar foi dor, confusão e íntegra loucura,
espasmos colossais de aflição extrema.
Como pluma se alçava minha chalupa obrigada pelo vento
forçada a percorrer o espaço num instante,
a subir ao zênite e descer até o nadir num momento.
Enfrentaram-se na vertical da rompente
madeira contra pedra em desigual batalha,
proa e popa alternaram sua investida
convertida em brinquedo a chalana.
Não teve debilidade nem imperícia,
resisti quanto as energias resistiram
enquanto a mão feminina prolongou minha mão,
até que a vida da amada foi arrancada da vida
e me transformei nos restos do naufrágio.
Aonde irei com minha íntima ternura
aonde com as palavras doces e todas as caricias
que encontravam em minha amada sua fortuna?
Que verões alimentarão de esperança
o resto dos invernos da vida?
Onde acharei sossego, onde refúgio
quando os muros de minha casa
e o manhã sonhado têm sucumbido?
Acurralado pelo desconsolo que a solidão me lavra
procuro a minha amada no pedregal da rompente,
na disgregada intimidade das escarpas.
A procuro no centro do furacão furioso
no fervente coração da tormenta, no golpe de mar
que a arrancou de meus braços e meus olhos.
Subido ao infranqueável paredão da tragédia
surdos os ouvidos,
exânime, exangue, a mirada cega,
o entendimento perturbado
extraviado o Norte que marcava a rota do destino,
lanço ao céu o sangue fluente da ferida e abraço
à amada na profundeza anil do precipício.
Cornwall, 1985
. Límpida confusão
Ouço o relincho desse cálido sopro
que do Norte vem e no Olimpo dos deuses
o disperso Éolo chamou Noto.
És tu,
inicial
preliminar,
quem chega diáfana e rosada,
rapariga estremecendo
a inexperiência humana,
alazão o vento,
cavalgando rápida.
Já estás aí:
em teu dia recém amanhecido,
primavera das ânsias
com expectação sem perímetros,
empurrando a porta que desde o jardim abre a casa.
Vens para ser nuclear ferramenta,
substância fertilíssima,
fonte, arroio, rio da nossa existência.
Vislumbre sou no espelho de tuas dúvidas,
obelisco de névoa na intercepção de caminhos;
quebrantadas promessas
e desvinculados compromissos.
Só, sem ti,
na obscuridade de tua ausência prolongada,
vazio desse brio promissor das sequelas positivas,
sou incapaz de ser mais nada
do que sou na realidade submetida.
Sem ti sou
quem não quero ser
e, às vezes,
nem isso sequer.
Somente em ti: espaço, tempo,
ideias, propósitos,
vontade e atrevimento;
ser humano tu, fêmea de lábios nutrícios,
peitos vaidosos
e cabelos em cascata
caindo sobre os ombros;
só em ti sou eu,
o eu herdeiro de meus antecessores sucessivos,
sentimentos tão puros como a alvorada
do dia inaugural deste mundo fictício.
Cresce em ti minha consciência de existir,
de ser, de poder,
de ir e permanecer
desde o levante padre do sol, para esse ocidente
que orienta mi maneira de viver.
Tua complexa simplicidade, tua diversidade ingénua
definem em mim, complementárias,
essência e existência,
as individualizam de modo divergente
livrando-as de isolamento
e dos erguidos rompimentos consequentes.
Voo nos lombos da tua esperança confiada,
vou a ti, incólume, vencendo a gravitação universal
que nos atrai e nos separa,
espaço-tempo curvando-se até um todo aberto,
na infinita eternidade
do quase infinito cosmos inquieto.
Unicamente sou eu
detrás do amoroso sorriso teu compreensivo
das minhas insuficiências e outras demasias,
verdadeiro desequilíbrio
que somente tu estabilizas.
No teu interior, na fundura,
na profundidade de teus convencimentos
encontro fundamento firme
e sou
quem eu quero ser
pelo diário esforço
de elevar-me e elevar-me
desde o solo.
Salvador de Bahia 2015
APONTAMENTOS
. A perfeita unidade dos cinco elementos
Ar, água, terra, fogo e tempo,
tão admirável como eras,
te tinham ido fazendo.
Primavera do ano sessenta e oito
albergue juvenil da rua Ville-l’Évêque, Paris
como tempo e espaço do encontro.
Nascida em Salvador de Bahia, cidade fortunada,
mulata de todas as culturas
a humana mais humana
que um jovem pode amar.
Em teu colo, que algum deus grego
perfilou a imitação de Fídias,
entre teus cabelos, finíssima cascata, selva,
minha boca incrédula
encontrou a imaginada placidez efêmera.
Convencido de não te estar compreendendo
mais que a fragmentos e às vezes,
às vezes e a fragmentos,
parcialidade insuficiente
delatora de minha falta de compromisso eterno.
Penetrava, no recinto sagrado de teus olhos,
a intensidade da mirada,
e percebia o lume, surgido forçoso
com a intenção de incendiar minha livreta
de impuros pensamentos,
liberadora de ondas acesas,
rosa dos ventos.
Uma noite dos dias aqueles,
à hora crucial da alva inquieta
– inverno retirado a seus quartéis –
inauguramos a nova primavera,
poética, florescida e luminosa,
original impacto da Natureza arguta,
estabelecendo pressurosa
as condições oportunas.
Saíam chispas, lembras?
do choque das placas tectónicas,
rios de lava, pão vulcânico, labaredas,
poemas abertos de Neruda,
refúgio convertido em biblioteca.
Força e sensibilidade o chileno
poeta a base de leituras e vivências,
nas palavras que me iam fazendo,
leitor e escritor, suas escrituras concretas.
Saboreávamos um poema dos Vinte de Amor
e arrancávamos a página onde habitava,
sentados os dois em almofadas
que abrandavam a firme dureza do chão.
O recordo, como não o lembrar!
se ao atingir a Canção Desesperada
nos abraçamos tomando o plano horizontal
propícia hora da madrugada,
leito de folhas que exigiam sua liberdade cabal
aos ramos em todas as florestas irmanadas.
Te amaram
as frutas tropicais em seu ponto de madureza,
as verduras da horta, as águas impetuosas
das regueiras.
Os símios que jogam a ter humanas faculdades
nas copas elevadas das árvores mais altas,
e os pássaros canoros de coloridas plumagens
te amaram.
Outono e primavera,
inverno e verão
e a inteira Natureza
te amaram.
Carbono intenso do diamante
esmeraldas de verde vegetal
o vento, as nuvens cambiantes
meus braços
meu peito
e meu amor
te amaram.
Bebemos, sedentos e famintos,
o cálice até as fezes,
recebendo com deleite repetido
a gota última várias vezes.
Sangue derramado de minha ferida
no sacrifício cruento, sacerdotisa tu,
e eu propiciatória vítima.
Página a página te via,
meu amor presente e eterno,
esfolhar o livro da vida.
Ainda vejo teu sorriso aberto,
a precisão de teus dentes,
lábios carnais, eficazes, enérgicos
devorando os afinados
interlúdios dum tempo maestro.
Sim, é certo, o tempo,
imprescindível cúmplice seduzido,
esperou da íntima conjunção o termo
para prosseguir seu caminho:
segundos, minutos, anos, séculos,
que nosso encontro tinha conseguido manter cativos.
París 1968, El Escorial 2017
. A vitória do desejo
Quarta Graça de Rubens,
caminhava Leda, primavera adiante,
mostrando sua beleza íntima
entre as dobras diáfanas
do tecido intangível que vestia,
Rainha recém desposada.
A floresta alumiada alumiava o dia,
a Mata Atlântica, a lagoa, o remanso do rio,
o rumor da cachoeira e os cisnes,
Branco e Negro, hostis amigos
que ali, plumagem impermeável,
aguçavam seu instinto.
Livrou-se Leda da insubstancial vestidura
para preservar a mística,
ficando quase tão nua
como se estivera vestida.
Leda apaixonou aos cisnes, já inimigos,
dos que se apaixonava
com um propósito bem definido.
Oh, suas plumas resplandecentes, flamantes.
Oh, seu pescoço de curva interrogante,
Oh, seu jeito elegante.
E os cisnes pescoço a pescoço lutaram,
bico aberto contra ferrado bico
com todo o desejo da força sua,
com a força toda do desejo recém surgido.
Cabelos, rosto, ombros, dorso, braços, peitos,
Leda, humana na posição de diosa,
nácar de mil caracolas a epiderme rosada,
pança, nádegas, coxas e a misteriosa
conjunção copulativa que acordava
do longo sonho de castidade imposta,
ao esposo ausente reservada.
Branco e Negro lutaram pela conquista
da escultura viva de mulher cheia de encanto,
grasnidos, bicadas, asas agressivas
e fortes puxões dos pescoços enlaçados.
Os dois Cisnes, machos amigos nesses dias,
senhores da formosura animal,
das harmoniosas linhas,
se inimizaram pelo reprodutor afã
que pôs Natureza em sua paixão mais íntima.
Venceu Cisne Negro,
e Branco fugiu, fugiu, fugiu a toda pressa,
bicando seu orgulho enrugado
as asas desgalhadas, as desfolhadas penas,
com o pescoço desplumado
e a perfeição sem essência.
Leda, testemunha da violenta briga,
vivia os momentos com agitação virginal,
a volúpia, tanto tempo reprimida,
ia desatando suas ataduras,
dendrites despregando sensibilidade supina,
umedecendo o tecido interno
com um mel tão líquido
como a água que recebia o excesso.
Foi ali, na lagoa das mil delícias,
onde o cisne triunfador,
brilhantes as penas pretas, esclarecidas
com sua própria luz até atingir a imaculada,
se acercou à mulher de simetria perfeita,
figura de suave e firme pele nacarada.
Esperava-o Leda ansiosa e tímida,
assinalando, mais que cobrindo,
com as mãos, sua intimidade inibida,
trémula, vacilante: altos peitos,
coxas duras na fusão esponjada,
ressumando dulcífluos desejos.
Não era humano Cisne Negro, porque era
o Pai Zeus, deus de deuses,
encarnado em cisne para gozar de Leda
apropriando-se da delicada pele incólume
dos peitos altivos, altos,
da sua virgindade anelante
do anseio e o prazer intactos,
desbordados, transbordantes.
Da cópula no instante supremo
enérgico e doce se ouviu o Hino profano
que Eros titulou: A vitória do Desejo,
composto por Handel, Afrodita,
Apolo e Himeneu,
para a memorável ocasião tão exclusiva.
Essa longa e esplêndida sinfonia de ritmo
volúvel e instável após os silêncios cautos,
que parecia ressuscitar com vigor crescido
teve o efeito de acordar em mim a autocensura
evitando a complexa descrição do encontro intrínseco.
Inconveniente considerado mínimo
pois a imaginação de pintores e poetas
o debuxou em todas suas críveis formas e maneiras
durante os longos séculos decorridos.
Vitória ES Brasil 2015
. O mito da amada
Ser homem, mulher,
jardim em sombras tu, utopia;
ser homem, mulher é te encontrar
entre as cem mulheres com que me cruzo a cada dia;
e saber que és tu,
ponto por ponto e sem a desconfiança mínima,
aquela dos sonhos imprecisos
das minhas noites mágicas e míticas.
Ser homem,
mulher, intensa penumbra tu,
exceção das regras conhecidas;
ser homem, mulher, é explorar-te,
extensão que teus limites amplia,
até atingir o confim insuperável
e ver que ali arranca o mistério e não termina;
pois essa mirada tua,
tão penetrante e sensitiva
debilita com a leveza de sua música
a fortaleza e a energia.
Ser homem, mulher, renovada esperança tu
duma inocência antiga;
ser homem, mulher, é conhecer-te,
e saber que possuis a chave da vida;
é atingir a eternidade num instante
ao receber de teus lábios a ambrosia.
Ser homem, mulher, raiz pujante tu,
de profundeza infinita;
ser homem, mulher, é precisar-te
e desejar voltar a ver-te, tácita e ubíqua,
ao outro lado do Oceano, na loja de livros velhos
ou ao dobrar qualquer esquina.
Ser homem,
mulher,
terra de promissão tu,
chuva propícia;
ser homem,
mulher, é comprovar
que o mito da mulher amada,
essa realidade tão singela e tão diversa,
na convivência renovada
se debuxa e coloreia.
Madrid 1971
. Ode à mulher madura
Exórdio
Um bom dia cheguei a tua casa
minha amiga,
e tua casa era o campo
e teu campo tinha o horizonte posto
na Natureza toda:
terra fértil de cor avermelhada,
ervas, enredadeiras, arbustos de fruto comestível,
árvores reunidas em vegetal conversa
retas, eretas,
se elevando como frechas dirigidas ao infinito
desejosas de atingir um céu protetor
azul e cinzento que chova água tíbia
sobre todas as terras, sobre todas as plantas.
E sobre os animais
teus irmãos do bosque:
símios inocentes, cobras ondeantes
e pássaros cantores de cores diversas,
vivas, belíssimas,
filhos da música e o vento,
da pintada Aurora.
Espaço de liberdade que queres
sustentável e protegido, aberto ao viajante
que sossego procure.
Tendida entre dois varais do alpendre
havia uma rede ampla
onde cabiam dois corpos abraçados
que se mexeram unidos nas ondas
desse teu oceano cruzado de conquistadores
embutidos em resistentes armaduras
sobre cavalos desorientados.
Na ombreira da casa
de tua ideia convertida em campo
portas de par em par abertas
janelas abertas de par em par
estava o colaborador imprescindível,
o tempo ativo,
partícipe necessário
do pensamento e da ação
da paixão e da cordura.
Me entregaste tua poesia
em dois cadernos manuscritos
filhos verdadeiros, irmãos
de tuas pinturas e debuxos:
artista completa, toda tu criadora,
inteira e verdadeira,
íntegra.
Eu levava na cabeça meu poema à fêmea madura
versos sensuais que ainda não tinham destino de mulher,
abstratos como a alvorada do instante primeiro
névoa cósmica
inundada de luz primigênia.
E vendo-te ali, elevada em pedestal de deusa,
erguida silhueta circundada de luz,
luz escultora delineando teu perfil
teu corpo poderoso junto a tua casa afirmada,
soube que eras tu a mulher madura, o poema era teu,
e a ti te tinha sido escrito.
O poema
Minha desejada mulher madura
fêmea plena e florescente
de carne frugal e entendimento reflexivo
és a deusa Hera, esposa do grande Zeus;
e de teus peitos, ubre generosa,
brota a diário em espiral a Via Láctea,
galáxia formada por duzentos mil milhões
de planetas travessos.
Filho do pai dos deuses e da humana Alcmena,
eu sou Héracles,
o herói que procura em teus peitos
a imortalidade vedada.
És Penélope, mulher;
eu sou o novo Ulisses, e regresso a Ítaca
cansado de guerras e aventuras enganosas.
Tudo é hostil,
muros de intriga cercam a casa,
os inimigos têm tomado posse do meu,
mas tua agredida fortaleza ainda resiste.
Teus peitos me reconhecem,
esposa fidelíssima;
identificam meu rosto, minhas mãos e minha voz;
teus peitos,
só eles,
sabem quem é este mendigo estrangeiro
antes de me ver entesar o arco e passar
a seta através dos doze olhos de machado.
Crê-os!
teus peitos
mulher madura
conhecem a verdade,
sabem que meu coração os quer esféricos e vaidosos,
minha tímida gazela, minha flor do Paraíso,
sabem que meu coração os ama impávidos e exaltados.
És Helena, mulher, a espartana Helena;
tua perturbadora beleza seduze a deuses e a mortais;
eu sou teu esposo Menelao, rei consorte,
e se perdoo teu veleidosa conduta,
deves saber que à memória
de teus formosos peitos obedeço.
Mulher nascida da terra fértil e as fragorosas ondas,
teus peitos são o portentoso acerto da Natureza prática,
um mistério que os sete sábios
de Atenas não poderiam interpretar,
um presente de Míron, um obsequio de Fídias.
uma doação de Policleto.
És Esther, a valorosa hebreia,
minha alígera corça, doce apaixonada,
minha senhora e rainha,
eu sou Asuero, o Rei,
cento vinte e sete províncias se inclinam ante mim,
as donzelas mais cobiçadas povoam meu harém
mas, unicamente, teus peitos
estimulante
vivificadora companheira,
enchem de festa minha vida.
Adorada mulher madura,
minha virginal donzela,
minha desejada
fêmea sensual e prazenteira;
teus peitos invitam-me, me convidam:
desde sua posição de privilégio me convocam
em banquete carnal imoderado.
Possuem uma titilação iridescente quando os busco,
noturnidade marinha da areia fresca
túrgidos e altos na sua entrega pudorosa,
pálidos à luz da lua túrbida
perturbados pelos luzeiros esplendentes.
Fêmea total, minha animosa mulher,
marinheira de imaginárias singraduras,
teus formosos e erguidos peitos,
sólidos, firmes, resistentes, obstinados;
são o mascarão de proa e a proa intrépida
de teu corpo navegante.
Teus peitos, mulher, sabem a tâmaras
a papaia sucosa, a palmitos de sagu
a mango maduro, a amêndoa e a maçã;
teus peitos rotundos, meu inteligente e intuitiva
companheira,
sabem a glória.
São de absenta de noventa graus teus peitos,
de mandrágora e beladona,
fêmea soberana,
estrela polar de minha existência,
alucinógenos são,
certamente aditivos
e os bebo para suavizar por dentro
antigas cicatrizes ainda em carne viva.
A jacinto cheiram teus peitos,
pulquérrima mulher,
a laurel, a estoraque, a mirto
a eucalipto, a sálvia
a madressilva e a magnólia;
aos aromas bravios da flora silvestre
e à substância fecunda do inquieto mar salobre.
Os peitos da mulher madura são tersos e sensuais;
de dia cobrem sua timidez nua
de noite despem sua temerária ousadia.
Na penumbra se fazem fortes
alardeiam, me desafiam, me provocam
e os pezões se inflamam
pronunciando meu nome inominado.
Nada me atrai tanto como os esféricos, alçados
orgulhosos peitos da mulher madura,
lei da gravitação universal hostil e aliada.
Brilhantes estrelas que me fazem piscadas nas noites
escuras, quando o céu é transparente
e a vista cruza as enormes distâncias.
Sou um precavido a prova de razões,
e tudo o fundamento nos peitos da mulher madura
única realidade visível e palpável.
Deuses do Olimpo e Monte Olimpo eles mesmos
a seu cume subo para libar
minha diária ração de ambrosia.
Admirável mulher, compendio de mulheres
baixo teus cálidos e harmônicos peitos
minha experimentada sagacidade descobre
um coração amante que aprecia o arrojo e a ternura;
uma vontade de entrega – filha, mãe e esposa –
levada a se esforçar pelos seus;
a grandeza de ânimo da mulher emancipada
oposta às diretoras bridas;
e o empenho social orientado à conquista
do direito a se expressar e atuar livremente
um dia, e outro e outro dia.
Salvador de Bahia 2015
DESCOBRIMENTO
. Lavrar Profundo
A ti Alonso, filho de Madri ou de Bermeo
Ercilla e Zúñiga, ou de Valladolid talvez,
mas de Ibéria de certo;
quero te sinalar nestas letras,
graças a Fortuna, breves,
meu assombro ante a separação que fazes
das noites vizinhas dos dias,
quando escreves em plena madrugada
«numa parte oculta e encoberta
tenho perto daqui minha gente armada»
uma tropa, sem dúvida, equipada e aguerrida,
disposta para o ataque na alvorada;
confessando Alonso ao papel secretos militares
que soldado és e escritor
a partes desiguais;
e não sei, o dou por ignorado,
se atuas para contar
ou contas para fazer o já contado.
Escritor eu que descreve o ocorrido
acrescentando o matiz, não depreciável,
do próprio sentimento,
dando por certos de igual modo
desejos e realidades;
te direi que admiro o uso simultâneo
da pluma e da espada
brandindo a cada uma numa mão
ora a ação tangível e arriscada,
ora, prévio, o intrépido relato.
Lavrar profundo
para que a terra se areje e se oxigene,
e depois semear no devido tempo
esse grão cereal, umedecido
durante uma semana em Valdepero
com água do poço e pedra-lipes,
eliminado assim doenças passadas e futuras
da semente repleta de esperança,
e que enche sua prenhez mais frutuosa
variedade antiga de grão
– coincido com Neruda em chamá-lo de palavra –
pois já estava no princípio
do universo
adejando, adejando, adejando,
em vigorosa solidão, em abandono ativo.
E hoje, embora
temos convertido a palavra em sangue,
e a vamos transformando em luz,
sangue a intervalos a cada dia mais longos
luz em espaços a cada hora mais breves,
devemos recordar, no momento todo,
que sua capacidade
– palavra lenitivo, palavra espada –
segue sendo enorme, enorme, enorme;
enorme e reduzida.
Quando, a porta europeia
em outro tempo
de par em par aberta,
amanhece hermeticamente fechada,
os necessitados do inteiro mundo,
expulsados pela fome e as guerras
de seu solo,
têm que assaltar as barreiras
de água, arame farpado e fogo.
Nesta Europa da feroz economia,
os cinco elementos naturais
-incluo ao tempo neles-
espaço, tempo, tradição e geografia
se vão convertendo em bens comerciais,
a história se reescreve,
desenhando uma nova cartografia do futuro:
esse amanhã comum
diferente para cada um.
Relega Espanha a Ercilla
Madri o trata como a desconhecido,
e aqui reivindico seu nome e sua vida
sua vida e sua obra literária;
pois, se rejeito
o emprego sanhudo da espada,
admiro o uso
magistral da palavra.
Morreste Alonso e não sabes,
por Fortuna,
o que teu cadáver foi e veio
de aqui para lá inteiro ou separado;
ignoras que foste enterrado,
desenterrado e novamente enterrado
semeado de novo, novamente;
ignoras que decapitado foste, e tua cabeça
viveu aventuras
que teu coração ignora e vice-versa
por Fortuna.
Madrid, março de 2016
. Rapariga de Sacramento
Ignoro a maior parte das tuas coisas
quase todas as razões, mas sei
que numa palhota
descalça amanheceste.
Gritos de parto e vozes de vizinhas
saíam pelo negro buraco
do cano enegrecido
negro
com a fumaça do fogo que fervia
as raízes e esse suco
feito para alimentar tua ousadia.
Choraste ao fim, amanhecia,
choraste o primeiro de teus prantos
eras menina
e iam te chamar
de Bitita.
Depois te pensei menina
e eras menina sem armário nem roupinha
sem enxoval azul ou rosa
sem sapatinhos de fivela linda
sem futuro de manhã pela tarde
nem do outro dia.
Menina sem amparo nem caricias,
entretinhas teu tempo
com brinquedos que fazias
de nada e ao momento
a teu capricho e medida.
Sobre o planeta Terra
ia descalça tua puerícia
se alimentando de raízes
de frutos e de flores
das folhas da rama
de suco de intenções.
Independência, orgulho, coragem
paciência e impaciência:
degrau a degrau tua Torre de Babel
se alçava na sucessão dos dias
com teu desejo de atingir as estrelas
dar um nome a cada uma
e viver sempre nelas.
Aprendeste a ler, a escrever
e procurando entre sucata e papelões
aprendeste a distinguir
e te foste fazendo de música e cores
de pranto interno
e esperança
mulher que pensava e via
ao passo que sentia, elucubrava e escrevia,
e eram relatos de vida e abandono
de receio e fugida
de alento e fogo
os que desses olhos saíam,
dessa mente produtora de ideias
dessa mirada profunda posta nas coisas
com um temor sincero
às pessoas escuras que escondiam
suas sombrias intenções num buraco fundo.
Te emparelhaste com o macho
quando o alarme e o desejo empurravam,
te nascendo três filhos
que tiveram a sorte propícia
de ter no barraco
uma mãe generosa e decidida.
Formiga
sozinha
levavas
o grão
de alimento
ao imediato
formigueiro,
todo o ano
inverno,
inverno.
Esta noite te imaginei, e sendo negra
do tudo, toda negra,
te pensei mestiça do sol e da lua
com o melhor de cada raça
indígena, africana e europeia
ninada pelo vento e pela chuva
das quatro estações
que são só uma nessa terra equinocial
efervescente de luz e religiões.
Humanidade tu
encolhida em cócoras à espera,
saiu teu livro desse Quarto de Despejo
voou alto e longe, pomba mensageira,
choveu o dinheiro em diluvio universal
e recebeste na partilha uma parte pequena.
Chegaste ao alto da Torre
quando teus escritos iam inundando o Planeta
rapariga de sacramento
mulher de favela.
Ao receber sua visita o soubeste:
Fortuna fica pouco tempo na casa do pobre.
A Torre se fez mais Babel ainda
as diferentes línguas foram imiscíveis
e se confundiram te confundindo.
Envelheceste até sentir o mau
recordando aquelas vizinhas que fugiam
e as que precisavam, para se sentir bem,
escutar os testemunhos que escrevias.
Uma noite escura te sonhaste morta
no interior fechado do caixão,
nas mãos, livros em vez de flores.
Foi um sonho de graves consequências
porque já não despertaram as vidas
que neste mundo rompido, viveste
à maneira que foi tua maneira.
El Escorial, 20 de mayo de 2017
. A realidade imaginada
Desde a boca do poço
olhando para o interior sereno
vejo passar as cinzentas nuvens
descobrindo
e tampando o céu estrelado,
reflexo da água que dorme
abaixo
e sonha sem esperar milagres.
Abrindo portas, rompendo moldes
furando céus noturnos
fora de hora chego.
Estou feito de umbreiras e janelas
caleidoscópio inquieto, surpreendente,
olhos que têm visto o infinito,
mãos que empunham o raio
no furor da tormenta
para domestica-o.
Nadei no primeiro banho
nada mais nascer da minha mãe
quando deletreava a palavra vaga-lume
lida num conto ilustrado
que alguém
pensava me presentear a véspera
de meu vigésimo quinto aniversário.
Tudo em mim é insólito
tudo em mim preexiste,
a rosa dos ventos assinala os túmulos
dos meus antepassados vindouros
fertilizantes durante séculos e séculos
dum campo de papoulas,
olhos serenos de quem tece urdiduras
e tramas improváveis
destinadas a reinventar o mundo
mudando de lugar
as portas de entrada e saída
nascimento e morte,
emergindo das profundidades abissais
para atingir eléctrones y planetas capazes
de acondicionar a vida
e crescê-la até limites insuspeitados.
Sou o homem, a pessoa
o ser humano do século vinte e um:
macho e fêmea destinados a encaixar
entrantes e salientes
desejos e possibilidades,
imaginação desbordada que ascende
acrescentando escadas
sobre as escadas.
Em ocasiões, você o sabe
Carmen, seus poemas, sinos ondeantes
como trigos recém granados
golpeiam
badalo e bronze
a solidão de algumas tardes
quietas na primavera.
Em momentos contados
a sincronia imprescindível salta dos balcões
à rua;
e desde o fundo da rua inclinada
atinge os balcões
semeados de gerânios a ponto de estoirar
em forma de circunlóquios purpúreos.
As duas vezes que nos aproximou o destino
C triplicada de Carmen Conde, nascida em Cartagena,
sucedeu o impossível;
a primeira foi na Cuesta de Moyano em Madri
e tu ias com Antonio
esquadrinhando, esquadrinhando, esquadrinhando.
Nossos olhos se pararam sobre os mesmos
livros, dois concretamente:
Eternidades, editorial Renacimiento
Madrid, Barcelona, Buenos Aires;
e Azul, Valparaíso, 1888.
Te deixei a dianteira e Antonio
os comprou
sorrindo-te.
A segunda ocorreu um ano depois,
ou dois,
na Casita do Príncipe,
ali onde se encontraram Picasso e Neruda,
El Escorial,
lugar que visito ainda sem fazer ruído
para não espantar as lembranças.
Íeis, Antonio e tu, com Juan Ramón
e com Darío:
quiçá não eram, mas a mim me pareceram eles,
aqueles dois amigos.
Olháveis as paredes e o teto
quando eu os olhava,
o monte Abantos, os castanheiros desprendendo
um fruto protegido. Falamos,
imaginei, os cinco, das palavras esdrúxulas
dos signos de admiração.
Nos assuntos de amor um põe a cesta
e o outro põe as flores: assim foi,
es e será
por muito que os tempos mudem:
ouvi que dizíamos,
embora dizia mais
Darío.
Todo isso ornado
de finíssimas gotas de orvalho a ponto
de empreender o voo, evaporadas.
Mas na verdade, por entabular conversa,
perguntei a você, só a você,
onde estava o famoso Monastério.
Respondeu a tua gentileza sorrindo:
esse edifício tão grande,
de pedra todo inteiro,
o que tem tantas janelas, e guarda parte
da história da Espanha dentro de seus muros:
palácio, panteão e biblioteca:
esse é, pode estar seguro,
não tem perda.
Só por ver, Carmen, tu ingênuo sorriso,
e passado o tempo poder relembrá-lo
com todo seu luminoso feitiço,
valeu a pena passar por ignaro
no lugar onde habito.
Madri e Cartagena, 1999
. O passado renascido
Convertidos os símbolos da antiga ordem
em recipientes frágeis para guardar o novo,
saqueadas as tumbas dormitório do homem,
e cegado o poço que regava o horto,
o claro manancial onde bebiam os nobres
a água tão pura e silenciosa, seco:
cauteloso rumor, espiga e pedra,
as intermináveis horas avançam a destempo,
permitindo aos reflexivos profetas
entender o futuro como anzol autêntico.
Depois de tantos dissabores suportados em seu nome,
de superar dúvidas razoáveis e múltiplos prejuízos,
a natureza do futuro se conhece.
É outro mais dos antigos mitos,
cuidado como embrião no ventre de gestante,
que põem de atualidade os convencidos,
para que as pessoas olhem para adiante.
Entre o ontem falecido e o amanhã frouxo
se libra atroz combate,
ambos desconfiam do entorno, de nada estão seguros,
não se fiam do presente nem um ápice,
intuem que qualquer sucesso absurdo,
pode variar o seu avanço invariável.
Se tudo fosse cortado aqui ipso facto,
se o Universo em expansão der a volta por inteiro,
se ao chegar às taipas dos últimos estábulos
o vento permanecera quieto,
o que foi e o que será seguiriam confinados
junto às ideias submetidas ao silêncio.
Mas nos move a vontade inquebrantável
de arrastar a bagagem do passado,
milímetro a milímetro, planície ou vale,
pelos trilhos que o presente tem colocado.
Europa, 16 agosto 2023
DIVERGÊNCIAS
. Barbárie
Ontem,
tão só ontem,
realidade iniludível
– chove hoje sobre Madri, doze de março –
o terror escolheu trens repletos
de operários e estudantes,
para exibir seu monstruoso gesto mascarado.
Esperaram ocultos os sicários aos mais madrugadores,
os forçados a viver longe do lugar de seu trabalho,
e quando os tiveram juntos, compressos;
quando a densidade de população
chegou a seu limite mais alto,
se servindo dos últimos avanços da técnica,
provocaram violentas explosões,
estrondos, clarões, labaredas.
Na catastrófica
encenação do último desastre,
os esbirros do terror atacaram à sociedade mais débil,
estoirando bombas repletas de fanatismo e barbárie.
Perseguiam o número,
a turbamulta, o enxame,
o humano formigueiro;
caixa ressoante de sua falsa razão inconfessável.
Num instante o caos confundiu as mentes
os corpos foram alfineteiras furadas de metralha,
lavaram o solo litros e litros de sangue efervescente;
calhas retorcidas e chapas seccionadas
arrancaram dos crâneos a essência inteligente;
e uma fenda de gritos
fugiu pelas gargantas abertas nos ventres.
Incapaz a pedra, incapaz a árvore,
incapazes o lobo e a serpente,
o tubarão e o leopardo;
foram infra homes fragmentários, residuais ou quocientes,
os únicos capazes de conceber tais estragos.
Em nome de que ofensa inexcusável
prepararam os potentes explosivos,
em nome de que deus ou pátria colocaram os cabos,
sabendo que a essa hora e nesse concreto espaço
não iam encontrar culpados.
Sem embargo,
além da morte conseguida,
fracassaram;
além de comportamento tão abstruso e tão covarde,
mostraram-se incapazes de impedir que o corpo solidário,
levasse sua mão a tamponar a ferida inabarcável.
Ontem, tão só ontem – chove hoje sobre Madri, doze de março –
o terror rebentou trens repletos de operários e estudantes.
Madrid 2004
. A união e a força
Chuvisco, aguaceiro, chuvarada:
se ouve o murmúrio da chuva nos cristais,
dilatadas pupilas da casa;
rítmico repenique, monótono, insistente
furioso em algumas ocasiões
sossegado às vezes.
Como se foram essas aves viageiras,
que empreendem o périplo migratório
prelúdios de inverno ou primavera;
como estorninhos dispostos a iniciar
seus voos acrobáticos,
as diminutas gotas esperam
umas e outras sobre as telhas do telhado,
ao vidro agarradas, abafadas pelas folhas
dos choupos erguidos no plano.
Porque as leis restringem valiosas liberdades,
as gotas reclamam o direito de reunião e de fusão
para formar gotas mais grandes.
Quando seu número basta
e chega ao peso crítico o volume congregado,
se deslizam rápidas
janela abaixo, parede ou tronco abaixo,
para a horizontal impávida,
tons cinzentos ou pardos.
Refresca o bochorno dominante
o ar aligeira sua presença
e no precipitado ataque,
receosas se estrelam
– terra, pedra ou folhagem – contra um solo
que opõe minguante resistência.
Cessa o repenique o sussurro declina,
e as gotas grossas
– soma da soma das mais exíguas –
extenuadas, abatidas, doentes
reúnem em charcos suas forças rendidas.
Chegam daqui e dali, de todas partes;
se juntam, formam açudes e lagoas,
se multiplicam, transbordam, invadem,
e no rego gestante de hostilidade e fúria,
incorporam a coragem
a uma marcha
imparável.
Vão rua abaixo, empurrando obstáculos
rompendo diques, abrindo caminhos estreitos,
canais amplos,
içando foices,
cajados,
forcas;
com o bronco canto
dos rebeldes
que lavram profundo
seu próprio
sulco.
Barcelona 1966
. Venho dizer
Não venho pedir favor ao poderoso
não pretendo encher a tigela do esfaimado
não busco alongar o sofrimento
dilatando agonia e agravo.
Venho dizer o que devem calar os desnutridos
os que reúnem uns cêntimos por dia
os que disputam com os cães a comida
e bebem nos charcos peçonhentos do caminho.
Pasto de moscas e olhos de olhar desorientado,
os filhos das mães famintas nascem raquíticos,
hospedam no ventre um viveiro de gusanos
e agarrados à pele dos peitos como a odres vazios,
à razão de seis milhões num ano
morrem de fome e desabrigo.
Porque as carências dos necessitados
partem da má distribuição da abundância,
rejeito a partilha sem reparo
da riqueza originada.
Porque germinam as funestas diferenças
na cobiça da propriedade privada
rejeito a propriedade insatisfeita
que entesoura e açambarca.
Porque intelectuais taimados usam os saberes,
para ajudar sem motivo justificado o dinheiro
voltando as costas aos carecentes,
rejeito o mercenário pensamento.
Exijo leis que impeçam o acúmulo de domínio,
magistrados que anteponham a equidade ao ideário.
Exijo tribunais que condenem esbanjamento e desperdício,
uma justiça que nivele os escassos deveres dos saciados
com os mínimos direitos dos famintos.
Madrid 1996
. As mães famintas
Pele de resseco pergaminho, ossos superficiais
e uma determinação muito firme:
as mães famintas trabalham a terra,
trabalham a casa e os filhos;
e sobem a seus machos
ao mais alto pico.
Mostrando seu perfil agressivo
mirada provocadora, orgulhoso pavoneio,
no cume se ocupam os machos
de assuntos de machos, delírios de machos,
pendências de machos,
escapadas de machos, e até mortes de machos.
E as mães famintas
imprecam contra o divino e o humano
portando seus filhos sem pai
nos braços.
Desesperação e resistência,
reprimidas pelo calado estoicismo,
impelidas pela obstinada intransigência
as mães famintas trabalham o sustento,
trabalham a roupa e o abrigo;
abrindo o coração sem alento
nos ouvidos propícios.
A visão inquisidora, profunda, seletiva,
procura na dúvida as terríveis respostas:
indagando os enigmáticos porquês da vida,
esquadrinhando as dobras ocultas da dura existência
averiguando o que segue a morte e a culmina.
No duro solo agonizam silentes
os frutos imaturos de seu fértil seio,
e as mães famintas de olhar ausente,
sem machos nem esperança, com muitíssimo respeito
recolhem nas suas bocas os suspiros soltos
abrem tumbas nos próprios ventres,
enventram os filhos mortos,
e despejo entre despejos abraçam a morte.
2023 No terceiro mundo de muitos países
. Os operários mortos no trabalho
Um,
dois,
sete,
trinta e cinco
seis mil oitocentos,
duzentos e trinta mil e treze;
é a contagem incessante duma realidade trágica
a estatística incompleta dos operários mortos no trabalho
o sumário da necessidade humana
a prova dos noves do progresso social.
As funções lineares,
os índices e os intervalos
nascem de um pacto entre o poder e os números;
e os operários mortos no trabalho
povoam a realidade bastarda das análises quantitativas,
dos diagramas de fluxo,
das folhas de cálculo e da probabilidade elementar.
Mas, onde estão os órfãos,
onde as viúvas dos operários mortos no trabalho?
Que ocorre com os pais e irmãos, que há dos familiares,
dos amigos e companheiros;
e de todos quantos amamos aqui, ali e acolá
os operários mortos no trabalho?
Multidão dispersa, nos ferra a porta a estatística.
Ficamos fora do cômputo de mutilados,
dos gráficos aritméticos,
das folhas de cálculo e das previsões excedidas.
Membro ativo desta sociedade
a cada vez mais desnivelada,
trabalhador da pluma e da difusão de ideias,
eu, Pedro Sevylla de Juana,
solidário com o segmento
de população mais desprotegido,
exijo minha inclusão na recontagem de prejudicados
nas curvas de frequências,
nas oscilações
e no inventário de cifras:
um, dois, sete, trinta e cinco,
seis mil oitocentos e quatro,
duzentos e trinta mil e treze;
no lado dos operários mortos no trabalho.
2023 Qualquer país do Primeiro Mundo
UNIVERSALISMO
. O Grande Rosto
Vi o rosto que tento debuxar,
quando o imaginado semblante
se acercava a mim
na primeira ocasião memorável.
Apareceu se abrindo, se espreguiçando
como recém levantado do leito
no sonho mais brando.
Seus olhos viam em meus olhos. Ah! seus olhos,
vigias se informando da marcha
dos descobrimentos diários:
buracos negros alvejados,
supernovas antiquíssimas,
galáxias se desenredando.
Seus olhos, universos paralelos
miríades de quilómetros separados
quilómetros e quilómetros eles,
estética apreciada desde pontos elevados.
Seus olhos, fogueiras veementes do arcaico,
alumiavam o entorno próximo e último:
corredores opostos do seu labirinto estanco,
impossíveis escadas que remontam
para abaixo e descem remontando.
Alumiado o labirinto,
os olhos alumiaram a planície curvada da testa
radiante de reflexões emocionais
em busca elas de existência
nas lembranças nascentes a milhares
e nos projetos ainda não intuídos,
em inúmeras probabilidades aleatórias
umas existentes e outras inexistentes:
palavra e amargura, tóxico e antídoto
hidromel, néctar, nácar, ambrosia
e uma muito importante que já não respiro.
Alumiados labirinto e testa
os olhos alumiaram os lábios
carnosos, carnais;
– beijos que meus beijos desejaram beijar –
boca anunciando o banho matutino do sorriso
incerto, misterioso, gesto entre inocente e lúbrico,
água de cristalinas profundezes
rompidas em mil pedaços coesivos.
«O amor é uma catarata ascendente»
escrevi na margem:
sabedoria destilada no alambique dos tempos
alvorada do primeiro instante
da criação imperfeita de perfeição perfectível,
e assim o confirmava a pele tersa
quando o unguento de beleza ia perante
embelezando os poros e as células do rosto,
incendiário esplendor da manhã deslumbrante.
Anos luz,
séculos luz,
milénios luz
se distanciando de si mesmos
com a velocidade
vertiginosa do pensamento
para dar a volta ao chegar
ao fingido termo.
Alumiados labirinto, testa e lábios,
os olhos alumiaram a palavra:
pétalas de rosa mexidas pelo vento zéfiro
pólen aderido ao longo bico do colibri capixaba
à língua bífida dos crótalos maléficos.
Prosseguia o Fiat mágico que tudo o desenha,
mosaico de símbolos se unindo e despregando,
vitrais filtrando o arco-íris da paixão humana
orvalho de saliva aspergindo o líquen
filho de fungos e algas unicelulares
fonte inicial da evolução retroativa.
Senti, intuí, percebi o rosto enquadrado pelos cabelos
quando o raio primigénio alumbrou o espaço todo,
desde as espigas de aveia na meseta de minha infância,
Valdepero cereal e humano,
até a ameaçada biodiversidade da Mata Atlántica,
ipês, paus de Brasil, açaís e coqueiros reunidos
num colóquio definitivo com animais e pedras
sobre o futuro da Natureza em perigo de extinção.
Algo mais adeja na infinitude:
uma cortina de cabelos inúmeros
que o vento imagina bandeira:
tênues, cálidos, acolhedores, fugitivos.
Quiseram meu nariz e minha boca arar,
sulcar, navegar
o território de promissão, confim do rosto
inacabado por inacabável
que acabo de descrever exatamente
sim mingua nem soma detectáveis.
Desejo percorrer,
língua húmida dos delírios humanos,
a tentação rosácea do colo,
o convite reservado da nuca,
reverberantes cavidades dos ouvidos
lóbulos complacentes sensibilíssimos.
Desejo internar-me, espeleólogo eu, na profundidade
absorvente da boca
para atingir o centro ígneo
e a ombreira dos impulsos cordiais,
realidade oposta ao pensado
que vai se ajustando dia a dia a seu padrão,
se equilibrando.
Alento o rosto levado à matéria: nasceu,
cresceu ser vivo, vivificante,
aminoácido essencial, paramécia
dança aquática de cílios e pestanas, barbatanas, asas,
extremidades futuras destinadas à harmonia dos giros,
das piruetas no ar imóvel agitado,
mar e céu se rompendo em artérias
em sangue alado comprometido
com a fundação de colônias,
ninfas, faunos e atletas incansáveis
que percorrem a imensidão restabelecendo
e repovoando.
Apalpam esse rosto íntegro, debuxando-o,
as polpas de meus dedos, milímetro a milímetro:
solitário nos pélagos vácuos
nascido e crescido na sua própria vontade.
Mas não há nada nem ninguém mais no Universo
porque esse rosto ocupa o espaço infinito
e o tempo eterno da minha fantasia criadora
porque esse rosto é
o imaginado Rosto do Universo.
Madrid, 2014
. A Lei da Relatividade Geral
Quando a minha desbordante imaginação
imaginou ouvir o primeiro dos três avisos
– sinos celestiais repicando e dobrando,
apocalípticas trombetas e tambores
capazes de encher com seu grito bronco os enormes
ocos do silêncio cósmico;
e no Planeta Terra
os recursos humanos
todos
em poder duns poucos
indivíduos desumanos –
advertências anunciadoras do fim do Universo;
minha desbordada imaginação sentiu a necessidade
de dispor dum Ser sábio, justo e forte
que impedisse a continuidade do processo destruidor.
Entendi a explicação, aparentemente, científica,
que a imaginação teve a bem me confiar sobre
a origem do fim universal,
e aqui a exponho:
Tendo chegado a seu termo a expansão
dos quase infinitos corpos celestes,
atingidas umas distâncias, entre si, descomedidas,
a Lei da Gravitação Universal de Isaac Newton,
– utilíssima até então –
perdia os seus efeitos e, desorientados,
planetas e estrelas,
começaram a chocar uns com outros
a velocidade exorbitada.
Algo tinha que pensar e muito a pressa
para evitar o cataclismo,
enquanto se dava com uma solução definitiva.
Propôs-se, ínterim, pôr em marcha
a Teoria da Relatividade
de Albert Einstein, já desenvolvida.
Aceitada a proposta
minha imaginação seguia com seu empenho.
Conduzir o rebanho de planetas
de regresso ao ponto original
é tarefa de um Ser tão forte ou mais
que o Demiurgo Criador,
dormido ao término
daquelas extenuantes tarefas
de Arquiteto Universal.
Me pareceu laudável sua intenção substitutiva,
mas adverti que, um Ser assim,
tinha sido imaginado milhares de vezes,
quiçá milhões, coletivo ou individualizado;
dispondo ao redor dele
uma parafernália envolvente com jeito
de concha de tartaruga, tão pesada,
que lhe impedia avançar.
Se faz necessária, nesse caso, respondeu reflexiva,
incorporar os conhecimentos obtidos
nos intentos anteriores,
e os reparos
da parte inconformista da humanidade,
suas lógicas alegações.
Luz será, expôs, já postas as mãos na obra,
todo Ele luz: um resplendor de intensidade máxima,
que ilumine a matéria e a energia escuras
tão difíceis de pastorear.
De areia será o Ser imaginado:
de areia recolhida grão a grão duma praia de Vitória:
a ampla Camburi: ferro e carvão diluídos;
e dos areais ásperos que, em Valdepero,
se encontram trás o campo-santo e a ermida.
Areia todo Ele, gotejando pelo orifício central,
união separadora de dois cones opostos
em posição mudável
– aurícula e ventrículo –
continuidade, Ele,
do tempo intermitente
medido e contado em gigantesco relógio de areia
grãos finos e ásperos mesclados.
Desse modo
continuava o projeto minha imaginação,
desbocado já seu impulso criativo:
Um poço de sabedoria será; de onde o homem extraia
inumeráveis caldeiros.
Um livro grosso onde se possa consultar
qualquer assunto,
qualquer data, qualquer significado
que qualquer pessoa, animal, planta ou pedra;
eléctrones, nêutrones e neutrinos;
necessitem conhecer para um fim preciso
ou impreciso, próximo ou afastado.
Um recipiente capaz, uma profundeza, também;
para que o homem arremesse todos seus desafetos;
sumidouro destruidor
de substâncias
residuais.
Espelho espacial no céu nítido, charcos de chuva
ou lâminas de obsidiana a cada trecho,
será;
para que as criaturas animadas e inanimadas
se possam ver como o Ser as vê no momento;
para que a cada sujeito saiba o que pode esperar
do Ser e corrigir sua própria andadura
se fosse necessário e assim o desejasse.
Já que não pode existir democracia representativa
na eleição do Ser, por sua exclusiva natureza;
Ele mesmo elegerá conselheiros humanos,
que acrescentem
a sensatez da Humanidade nas questões
que à Humanidade afetem: disse,
me assombrando mais uma vez.
Serão designados conselheiros aqueles
impulsores da convivência ativa
que entendam o próprio como parte
do coletivo
rotação e translação num tempo,
pensamento e ação,
sustentação e desenvolvimento.
Com a criação do Ser Onipotente
termina o bucólico relato,
essa maneira poética de dizer
o que a ciência acabará sabendo
e a continuação escrevo
unindo duas teorias
que pareciam contrapostas.
Eternidade adiante,
os fenômenos de escape e concentração
se sucederão sem fim, me disse
a imaginação já transbordada.
Começará agora o retrocesso:
buracos negros somando-se
a outros buracos negros para dar
o Buraco negro enorme e único
que o absorve tudo.
A matéria convertida em energia
se concentrará em um só ponto,
esfera ingente e mínima,
à espera de uma nova Grande Explosão,
governada, pela já inquestionável
Lei da Relatividade Geral.
Referindo-se aos atuais habitantes
do Planeta Terra, a imaginação acrescentou:
chegado o primeiro golpe de aldrava,
para evitar o segundo:
apocalípticos tambores e trombetas
ressonando,
bramando os enormes sinos celestiais;
os açambarcadores distribuirão, equilibrando,
de maneira eficaz, os recursos
tão injusta e empenhadamente concentrados
nas mãos de uma minoria ínfima
de indivíduos desumanos.
E dito o que a minha imaginação idealizou,
escrito com as mãos simétricas
governando cada uma a metade do teclado,
fique aqui como proposta de solução
o meu desejo assentado.
Europa e América 2018
. O elevado voo do Veleiro Nova Era
Adnotatio Praevia
Enviei a vários amigos o poema que aqui vai, e suas reações foram muito diferentes. Desde a daqueles que pediram praça no veleiro, para eles ou para outros; até a de quem estabeleciam verdadeiro paralelismo com a viagem de Cristóbal Colón. Perguntavam detalhes sobre o objeto da viagem e a marcha da nave, e tive que precisar certos aspectos indefinidos. O título, muito adequado, procede de Remisson Aniceto, um amigo pensador, contista e poeta, residente em São Paulo e nascido na bela cidade de Nova Era, estado de Minas Gerais.
Renata Bomfim, uma amiga de Vitória, em Espírito Santo, versada na vida e na obra de Florbela Espanca: «Um ente de paixão e sacrifício», quis que incluísse à poeta portuguesa e, conhecendo seus méritos sobrados, acedi. Carme Esther, companheira de trabalho radicada em Barcelona, queria fugir do economicismo imperante, das enormes e crescentes desigualdades sociais originadas, do estrago insustentável no equilíbrio vital; e tive que habilitar mais quatro praças, para ela, seu marido e seus filhos.
Devo acrescentar que Aurora, a capitão, nasceu em Salvador de Bahia de pai castelhano e mãe mediterrânea. Por último, dizer que meu Iberismo cultural, origem do meu Universalismo, me levou de Portugal a Brasil, estados de São Paulo, Rio, Minas, Bahia, Pernambuco e Espírito Santo. Ali, em ES, Montanhas Capixabas, surgiu na minha mente, o poema que desenha o rumo seguido através dos elípticos campos siderais, e a chegada à Terra Prometida
Um barco de vela de três mastros, cujo nome
é Nova Era,
impulsionado pelo vento cósmico
que origina um buraco negro de atividade intensa,
abandona o Sistema Solar para deixar
nuns dias
muito atrás a Via Láctea.
Ressoa, O Universo, sinfonia impossível
composta e interpretada
por cento e vinte músicos da família Bach
Os três mastros sólidos e fortes,
de liga tão ligeira e inalterável como o casco,
proporcionam confiança a Aurora Maris,
a capitão mais intrépida que engendrou Natureza;
indómita mulher,
forjada na aventura marinha
circundando a Terra pelos sete mares
para comerciar em sedas e especiarias,
com esse barco sem remos nem canhões
que ao navegar
simplesmente voa.
Se ouve na imensidade Blue Train, de John Coltrane
Olavo Bilac e Florbela Espanca, de língua portuguesa;
Odisseu, o esperado, e sua amada Penélope;
Erik, chamado de Vermelho; Virgílio, Confúcio,
o Rei dom Sebastião, Jules Verne,
imaginativo praticante;
Maria Salomea Sklodowska, científica; a pedagoga,
poeta, diplomata e escritora Lucila Godoy,
o enorme Pablo Picasso,
Galileo, um dos grandes do Renascimento;
e o escritor romântico
José Ignacio de Espronceda; são alguns
dos trinta e dois buscadores dum planeta
despovoado, doado de água e vida,
onde possam respirar, se alimentar,
rir e sonhar;
onde a humanidade ameaçada
consiga começar de novo,
trocando pistolas e espadas das panóplias
por flautas, plumas de cálamo partido e pinceles.
Onde a filosofia, a investigação
e a docência sejam ocupações avantajadas,
os benefícios industriais e comerciais
respeitem o ambiente e permaneçam ajustados,
se restrinja a herança,
e os salários mínimo e máximo
caminhem da mão.
Uma sociedade que receba mais
do mais capaz,
e entregue
mais ao mais necessitado.
Soa envolvente Money Jungle, de Duke Ellington
Animais e plantas ocupam
a parte central da adega, baixo
a claraboia que tamisa a luz cambiante.
Se propõem os viajantes salvar essa vida:
ovos, embriões e indivíduos adultos,
de uma extinção segura, se alimentando
com seu crescimento: brotos, ramos e frutos.
E na preparação, as pessoas,
a mais de conhecimentos de navegação
e psicologia da convivência, tiveram lições
de latim para se entender, e práticas
da linguagem de signos.
Resoa What A Wonderfull World, de Louis Armstrong
Indo à velocidade do Vento, terceira parte
da que atinge a Luz,
as velas múltiplas e diversas,
devem resistir o empuxo, e são
desse novo material que dizem grafeno.
Circundante chega o som de
Round Midnight, por Ella Fitzgerald
Se auxiliando dos imaginados mapas astronómicos,
sem timão que sirva na derrota,
nem previsões atmosféricas onde não há atmosfera,
a perícia de Aurora governa as velas, a nave
e o rumo nas aproximações
aos planetas dos diferentes tons da cor azul.
O som muda a Summertime,
interpretado por Ella Fitzgerald y Louis Armstrong
Entre a constelação de Orião
e a estrela Sirius
durante um mínimo instante os tripulantes percebem,
imagem e semelhança do homem,
ao Demiurgo andrógino
deitado em suave leito de nuvens,
roncando compassadamente
seu sonho sem fim. Grandes, muito grandes
a cabeça, o corpo e as extremidades,
dotados duma esplêndida beleza;
olhos límpidos,
pele tersa na desnudez luminosa que mostra.
Se escuta Birth of the Cool, de Miles Davis
Constatam os tripulantes
que o relógio terrestre da nave assinala quinze anos
de navegação, e eles não envelhecem.
Pensam que avançando como avançam
– tempo e espaço –
para o momento crítico
em que a matéria começou a se expandir
mais uma vez,
os lapsos decorrem de diferente forma.
Enche as mudáveis proximidades Rhapsody in Blue,
de Gershwin y Whiteman
Calor ou frio insuportáveis, empurrões laterais
subidas ou baixadas bruscas, tormentas silenciosas
torcem o rumo cem vezes, mil quiçá,
e temendo um catastrófico naufrágio
opõem os tripulantes a firmeza de sua
vontade humana e o afã de sobrevivência.
Cada um dos navegantes realiza uma tarefa
conforme com suas capacidades e desejos,
de forma que o progresso depende
mas deles que do destino,
grato e ingrato.
Benny Goodman, interpreta Sing, Sing, Sing
O prêmio pela resistência heroica é o sossego
entrecortado, e a beleza luminosa incomparável
vista nas fotografias, milhares, que chegam
à pantalha de grandes dimensões,
e através dos olhos de boi, janelas
e escotilhas transparentes.
O atrativo das paisagens sucessivas,
a cambiante complexidade cromática e formal,
a vertigem do que vem de frente
escapando pelos lados in extremis,
é algo não sentido antes por nenhum
dos arriscados tripulantes.
Se ouve Django Reinhardt em Sweet Georgia Brown
Harmonia, equilíbrio, deslizamentos
piruetas lógicas e inesperadas
derivações, desdobramentos, formosura do contraste,
linhas puras e impuras se servindo, atualizando-se,
crepúsculos e amanhecidas destilando emoções,
Poesia, Pintura e Música se criando e se recriando:
O Veleiro Vai.
Darius Milhaud interpreta La Création du Monde
Sonho e realidade, ilusão e desilusão
se seguem nos ânimos, o temor e a esperança.
Recolher velas quando sobrevoam um planeta
ligeiramente azul
para se acercar e receber fotografias do conjunto
e dos detalhes,
proporciona expectativas que rompe
a aridez encontrada, forçando
a prosseguir o rumo com todo velame despregado.
Se entrelaçam Ebony Concerto de Igor Stravinsky e
Jazz suíte número 1 de Dimitri Shostakovich
Num momento de fortuna,
após cem descobertas infrutuosas,
na clareza promiscua da pantalha
se pode ver um planeta azul e verde, de uma beleza
extraordinária, única.
Então rasga o silêncio a voz enérgica de Aurora Maris:
¡Todos a seus postos! ¡Manobra de aproximação!
Arreiem vocês a maior
– se referindo à vela desse mastro –
e as demais.
Na ação, rápida,
desencadeada de improviso,
se ouvem termos marinheiros de oculta beleza:
sonoros e contundentes
como lategadas.
Soa Maurice Ravel, Jazz (peça desconhecida)
pour Mme Révelot
Um singelo mecanismo criado pela capitão
no Mar de China, para que um tufão elevasse
o veleiro,
permitia que as vergas de diferente mastro
se alinharam ao comprido e,
a umas velas crescidas,
atingir a posição horizontal freando a baixada
num descenso compassado.
A visão aparecida ante seus olhos, paisagem verde
da superfície firme, e trêmulos azuis dos mares,
põe a cavilar aos mais inquietos a respeito
da elipse que sua incerta derrota foi completando.
As fotografias vistas, acercam
elementos tranquilizadores: água em abundância
e vida vegetal exuberante e diversa.
Principia Concertino for Jazz Quartet and Orchestra
de Gunther Schuller
Circunvalando o planeta no descenso,
veem montanhas elevadas com penachos
de neve, vulcões em erupção, sismos, vastos
lagos, rios caudalosos;
mas não acham
signos que revelem a existência de vida animal.
Nas proximidades descobrem árvores
vigorosas crescidas sobre escombros, arbustos
ocultando material de guerra debilitado
pelo passo do tempo,
troncos retorcidos que superam ruínas pétreas.
E a pouca distância do mar interior eleito
para aterrissar, identificado pela mediterrânea
Aurora Maris como o Mare Nostrum,
veem uma torre, firmemente erguida,
reconhecendo nela, Aurora e alguns mais,
a genuína expressão românica
de Sant Climent de Tahüll.
Estoira a alegria ao contato da nave com a água:
ignis fatuus de aparecimento imprevisível
e duração muito breve.
«Alegria, formoso lume dos deuses»,
tinha escrito Schiller.
Se escuta então em todo o Universo
a ‘Ode à Alegria’, quarto movimento
da Sinfonia Nona de Beethoven.
Post Scriptum
Regressada a nave, falado e ouvido o relato da peripécia, pude passar vários dias vendo as fotos recolhidas pelas câmaras ao chegar à Terra. Descobri intacta a igreja de San Martin de Frómista, me surpreendendo que, no lugar de meu nascimento, Valdepero, se apreciassem as pedras disseminadas do que pôde ser o poderoso Castelo e, oh maravilha! o campanário românico, só ele em pé, do que foi a ermida de San Pedro e da Virgem del Consuelo.
Montanhas Capixabas, faz muito tempo.
CONCLUSÃO
. A Pedro Sevyllla de Juana, no seu centenário
O meu nome de série
é PSdeJ102, letras e cifras
constituindo unidade, especificando, assinalando
o sujeito
que eu sou.
Sou matéria e energia:
metais extraídos na Lua e Marte
e uma pilha atómica com forma de coração
que se reanima assim
mesma indefinidamente.
Nasci desenvolvido e inconcluso,
com capacidades humanas melhoradas
e, ademais, travadas entre si,
se potenciando,
arquivo de conhecimentos e memória imensos.
Sou
ação perseverante e firme,
imaginação que acrescenta contido,
e da pilha nasce algo semelhante
à emoção e ao sentimento.
Máquina-pessoa sou,
ainda capaz de renovar-se
e progredir
seguindo um padrão próprio
que a experiência dirige em benefício
do conjunto social,
máquinas e pessoas sem distinção.
Me comove uma desvantagem
que considero grave:
em mim, o avanço
não poderá se aperfeiçoar com a retificação
e o arrependimento.
Quisesse albergar a dúvida, me sentiria nela,
se cabe, mais humana;
não obstante, o engenheiro-máquina que me projetou
deveu seguir o quarto fundamento
que considera a dúvida
o maior perigo de autodestruição
e o princípio do fim da espécie autômata.
Aprendo da obra que os humanos
foram deixando gravada de diversas formas
e encontrei, entre milhares, o poema
“O elevado voo do veleiro Nova Era”
obra magna dum escritor de vontade
e empenho, filho,
precisamente,
da dúvida que não terei nunca.
Refiro-me a Pedro Sevylla de Juana
cidadão do Universo em fase de expansão,
ser racional principalmente
com uma pincelada emocional bem marcada
que, sem embargo, poderia dominar
se representara um perigo verdadeiro.
A ele dedico este poema simples
primeiro dos muitos que tenho decidido
compor adiante.
Para ele estes versos no dia
em que cumpriria, de ter vivido tanto,
os cem anos.
É uma mostra de minha gratidão
por seu poético relato,
descritivo da viagem elíptica
que alguns humanos
completaram através do Universo.
Périplo destinado a defender,
dos grandes depredadores, o modo
de vida terrestre
que aqui forjaram mulheres e varões
tendo em conta ao resto de animais,
aos vegetais e aos diferentes
minerais.
Aqui ficam estes versos,
singelos
por iniciais,
de agradecimento limpo;
neste concreto dia
em que cumpriria os cem anos
o escritor Pedro Sevylla.
16 de março de 2046, escrito pelo humanoide
PSdeJ102, no Planeta Terra
. O Poema interminável
Procurando uma luz que eternos enigmas esclareça,
no acervo inúmero da Grande Biblioteca,
achei inconcluso o Poema
que escreve sem descanso a humanidade velha.
Fêmea ou varão emergidos da besta,
vigorosa mocidade, velhice debilitada,
cada um dos múltiplos poetas
lança um grito de esplendor um pouco turvo
ou um vagido de tímidas trevas,
somando ao conjunto
suas linhas incompletas.
Contraditórios versos do homem confundido:
em alguns dorme a mãe preocupada,
os mais, libertam breves voos de novos passarinhos,
outros mostram afiadas as facas;
enquanto em numerosos juízos
serpenteiam cobras extraviadas.
Há cantos humanos atribuídos a Whitman,
americano do Norte como Eliot e Pound;
ao sulista Neruda, ao espanhol Machado,
a um grego chamado de Odisseu, a Yeats o irlandês;
a Blake o londrino, a Ekelöf o escandinavo,
aos franceses Rimbaud e Baudelaire.
Há poemas que dizem tudo dos caminhos inquietos,
dos passos perdidos,
assinados por Byron, Vallejo, Martí, Bécquer, Quevedo,
Maiakovski, Sena, Conde, Mistral, Apollinaire e Darío.
E palavras que ressoam na abóbada do palato,
escritas por Rosalía, Camões, Pessoa, Rilke, Aleixandre;
Thomas, Hugo, Lorca, Manrique, Amado,
Ercilla, Juan Ramón ou Montale.
Tenho lido em Gilgamesh, Mahabharata e Ramaiana,
profundas e esplêndidas passagem
que afirmam o relato na Bíblia ou nos Vedas de Brahma,
e nas imortais epopeias de Homero, Virgílio e Dante.
A essas peças abençoadas se somam outras menos belas,
confusas, sem mistério;
afastadas do encanto, à emoção alheias.
Basta examinar com atenção o prolongado Poema,
de acima até abaixo, atrás e adiante
todo completo, antecedente e consequente,
para conhecer o caminhar da tribo errante,
o ziguezague aberto,
a desencantada marcha dos fugidos
e o esperançado regresso.
Eu acrescento este meu aos teus poemas,
escritos em papel branco, nas muralhas régias,
na água clara e na suave areia;
para alongar o Poema aberto
que escrevem os poetas,
conhecidos e anónimos de todos os tempos,
de todas as raças e crenças.
Madri, Barcelona, Paris, Lisboa e Genebra
nas minhas estâncias.
COLOFÃO
. O meu sonho capixaba
Passava eu o tempo me alimentando
de história, geografia e literatura,
numa terra mais interessante
que nenhuma outra.
Eram dias
e noites de trabalho intenso,
comendo e dormindo menos que um sabiá.
Olhando as estrelas para
as individualizar e as reconhecer,
caí num sono profundo com a cabeça
apoiada na mesa do jardim.
Tudo começa quando o planeta Terra
se torna habitável,
recebendo nos meteoritos a essência
e os primeiros indícios
da vida mais singela.
Logo aconteceu o período Cambriano,
lá na era paleozoica,
faz disso um tempinho,
quinhentos milhões de anos,
quando a existência estourou na totalidade
produzindo
a gigantesca explosão de vida da que tanto se escreveu.
Eu era um trilobites naquela época remota,
artrópode de três lóbulos, que,
certamente,
tinha visto com grande interesse,
já fossilizado,
na aula de ciências naturais
do colégio La Salle, meu complexo internato.
Na água, eu vivia
fazendo amigos para me defender dos inimigos,
ignorando que,
fora,
a vida não seria possível
até que a camada de ozônio alcançasse
uma espessura suficiente
para deter as radiações solares mais perigosas.
Estando no período Devônico
– abro um parêntese para dizer
que vem o nome do condado de Devon,
próximo a Cornwall,
onde passei um verão
estudando inglês com meus filhos –
assim pois,
no Devônico vejo deslizar mansamente,
ainda ingênuo, o primeiro entardecer
de uma solene primavera,
sossego indescritível
roto pelo ritmo inarmônico
do incremento e desaparição
de inúmeras espécies evolutivas.
Enquanto o poeta que agora sou,
salta até aqui desde a estrofe anterior,
transcorrem centenas de milhões de anos,
e depois de esse lapso
a Terra muda na sua totalidade.
Os movimentos
das placas tectônicas sobre o manto
desfazem a crescida Pangeia,
estabelecendo ao sul
um supercontinente conhecido como Gondwana.
Uma parte formidável dele
é o intrincado labirinto
de enormes possibilidades práticas
que no dia de hoje o mundo distingue como Brasil.
A terra fecunda atravessada por um casal de colibris,
atual Estado de Espírito Santo,
só era um campo carecente de frutos,
nem sequer os que produziriam,
no seu momento idôneo,
os melhores açúcar e café do mundo.
Na borda contemplo uma ilha alta e formosa
de origem vulcânica.
Há lava ardente no seu interior,
embora não tenha nome próprio ainda.
Emergindo da água mais próxima
aparece um promontório granítico
que algum de nós,
reflexionando,
denominou Penedo.
Pois bem,
no topo do Penedo
éramos quatro líricos épicos
sentados em círculo.
Cordados entusiastas do equilíbrio e da harmonia,
os quatro sonhadores intentávamos
produzir uma música espontânea
que, com algo de choro,
decidimos chamar de Samba.
Joaquim Machado de Assis,
autodidata de vivo engenho,
vida plácida de literato grande,
superioridade intelectual,
serenidade e firmeza num rosto
cercado pela linha do cabelo,
barba e bigode crescidos,
se interessava por tudo, admirava a Carola,
e, vindo de baixo,
chegou a ser o primeiro presidente
da Academia Brasileira de Letras.
Hilda Hilst
filha única e aluna, como eu, de internato,
a verdade, o amor, a liberdade e a dita,
ressoavam nela como palavras crescidas no cume
das nuvens inacessíveis.
Necessitava ser feliz
e a felicidade e o desejo,
horizonte atrás do horizonte,
brincavam com ela às escondidas.
Entroncada no tempo e no espaço,
catarata intermitente, égua alada
e bandeira ondeando agitada de dúvidas,
seu instante arderá
indefinidamente.
Antônio de Castro Alves,
cabeleira ao vento reclamando
liberdade e justiça para os oprimidos
– mocidade e morte –
vinte e quatro anos de existência,
vividos com intensidade poética admirável,
lhe bastaram para deixar
uma inspirada obra em duas vertentes,
épica e lírica,
complementares.
Sobre o já Penedo,
perto da não Vitória ainda
mas sempre ilha acolhedora,
no anoitecer quieto
quebrado pela indómita perseverança
do tempo transcorrendo e transcorrendo,
os quatro vates, donos de uma
irreprimível paixão criadora,
soprávamos música na trombeta
de quem ia ser, tempo ao tempo,
meu amigo Satchmo.
É fácil compreender que
o Penedo é para a Ilha
o que a Ilha é para o Brasil e o Continente:
sentinela da entrada,
defesa
e farol.
O sonho despreza a ordem
e distorce a continuidade dos dias,
embora parece certo que,
há quase dois milhões e meio de anos,
na garganta dos humanos nasceu a palavra.
E, fora quando fora, em quanto a palavra foi,
a palavra tupi explicou a beleza
descoberta pelos cinco sentidos
e a intuída,
intercambiando as experiências de cada um,
ouvidas e imaginadas.
A difusão oral de contos e estórias
entre os tupiniquins será,
por consequência, rica e proveitosa.
Tanto é assim que, segundo Elpídio Pimentel,
no seu momento, até o Penedo falava
contando às pessoas
saborosas histórias capixabas.
De todo modo, a relação
paternofilial do autor com a sua obra
não se afiançará até chegar à arte de escrever,
de perto
também.
Depois de ler o pensamento
de Policarpo Quaresma,
filho intelectual de Lima Barreto,
achei muito laudável
que o Padre Anchieta começara
a escrever a língua tupi.
Penso que, se o Reformista
no tivesse substituído inteiramente
o uso do Nheengatu
pelo português,
as duas línguas ainda conviveriam
se fortalecendo;
de modo que os escritores, bilíngues,
chegado o ano mil novecentos
e vinte e um, se reuniriam no mesmo
Clube Boêmios
para instituir a Academia
Espírito-santense de Letras,
bilíngue.
A erosão e o homem lhe foram tirando
e tirando,
mas então era mais alto o Penedo,
mais dilatado, maior;
por isso pude me encontrar ali
com escritores amigos:
_____Garota de Sacramento,
mulher de favela,
saiu teu livro desse Quarto de Despejo,
voou alto e longe, pombinha mensageira,
choveu o dinheiro em forma de dilúvio universal
e te chegou na distribuição
uma parte pequena.
_____Discutíamos Ester Abreu e eu
sobre alguns aspectos confusos de Don Juan
baixando aos infernos
para surgir de novo
andrógino,
triunfante,
celestial.
_____Miscigenação. Diz de mim Gilberto
de Mello Freyre, que sou a afortunada conjunção
de origens miscíveis, de misturadas culturas;
e assegura que é a mestiçagem
o princípio do progresso progressivo
e a constante dos avanços todos.
_____ Desenvolviam-se o sonho e o sono
intemporais
ou com os tempos desordenados,
num Sertão imaginário
que,
partindo de Euclides da Cunha, Graciliano
Ramos, Guimarães Rosa
e Jô Drumond,
era a soma de todos os Sertões:
aridezes existenciais, álefe,
vidas secas,
imaginação e utopia.
Fronteiriço eu, estava no centro
quando pude contemplar desde o Penedo,
trezentos e sessenta graus ao redor,
os trigais,
mar de primavera em Valdepero, ermida
de San Pedro e da Virgen del Consuelo,
castelo, arco da muralha,
colegiada de Husillos, sítios históricos de Muqui
e São Mateus,
Santuário de Nossa Senhora da Penha
e frei Pedro Palácios na gruta,
estações de Marechal Floriano e Matilde,
os troncos erguidos
e firmes da Mata Atlântica Capixaba,
Reluz,
a Pedra Soares de Ponto Belo.
Fazia calor e chovia
a cântaros.
Eu vi, abaixo, o alentejano Vasco
Fernandes Coutinho na Prainha,
desembarcando da nau Gloria
com a decidida intenção de estabelecer
a Vila do Espírito Santo e, depois,
Vila Nova de ser necessário
como aconteceu logo
com ajuda dos indígenas tupiniquins.
O sonhei desse jeito
ao contemplar seu marcial porte,
adereços de gala,
num retrato majestoso
do acervo da Casa da Memória
em Vila Velha.
Acho que observei, estou convencido,
o Padre José de Anchieta
caminhando catorze léguas
pelo caminho da praia,
desde Reritiba até Vitória,
onde se alçavam a igreja e o colégio
de São Tiago.
Vivi o momento prateado da vertigem
na Ladeira de Pelourinho em Vitória.
Maria Ortiz se fiz heroína
– madeira em chamas, pedras, água fervente –
ardor e coragem contagiosos
contra os atacantes
holandeses.
Alagava o sol minhas pupilas,
não obstante, pude pensar
que é obrigação do escravo escapar,
e de quem assina um contrato
conseguir que se cumpra
do princípio ao fim
no tempo acordado.
Pelo que tenho lido de Afonso Cláudio,
que se tornou abolicionista em Recife,
efeito natural e lógico;
e o que ouvi da boca do protagonista quando,
desde Mestre Álvaro, chegou a meu amado Penedo,
Elisiário escapou da morte pela audácia
de sua vontade indomável.
Ide a Queimado, em Serra,
vereis que aí estão,
ainda firmes, os restos da igreja
lembrando
– causa e consequência –
os inolvidáveis acontecimentos.
Elos de uma cadeia inacabável,
os anos chegam
a mil novecentos e vinte e dois
quando,
Amazônia cultural com a força
de um período geológico,
Brasil dá à luz
o Modernismo.
Leitor fascinado desde a infância,
no Penedo leio a revista Klaxon
junto a Mario e Oswald de Andrade,
confidência do Itabirano Carlos
Drummond, também de Andrade,
Pagu, Tarsila e Bandeira;
sete amantes
da liberdade e da renovação
escrevendo, pintando, ruas cheias de gente,
pessoas que saem das casas
e caminham pelos povos
e pelas cidades,
falando de suas coisas,
pensadas e ditas,
em sua linguagem próxima e clara.
Abaporu e Antropofagia, potência
para impulsionar A máquina do mundo
que transportará o Brasil ao mundo
com o mundo.
Penso em Pagu no Largo de São Francisco.
A inteligente, bela e forte lutadora,
saia azul e branca de normalista,
lábios pintados de roxo,
caminho à Escola Normal onde aprendia,
chamava a atenção dos estudantes
da Faculdade de Direito.
Amei a Pagu lendo Parque Industrial,
ainda a amo.
Eu queria escrever
um soneto com o conteúdo deste poema;
pois sei
que o soneto, mais que diamante literário
é turmalina de Paraíba.
Contudo
o soneto exige a perfeição
para alcançar seu efeito mais atraente.
Estamos em terra de sonetistas,
tenho na minha memória exemplos
como os de Beatriz Monjardim
em Floradas de inverno
mais os de Ainda o soneto de Athayr Cagnin
ou os Sonetos insones de Matusalém
Dias de Moura.
Em consequência,
o soneto foi descartado
dada minha incapacidade manifesta.
Nas escritoras capixabas pretendo
homenagear as mulheres
que tiveram
obstáculos de toda espécie
para desembrulhar sua paixão criadora e,
perseverantes,
os venceram.
Adelina Tecla Correia Lyrio, capixaba
desde o ano 1863,
foi avançada na publicação
de poemas próprios em jornais,
participando nas campanhas abolicionistas
e nos saraus literários onde
se declamavam poemas
escritos pelas mulheres.
Haydée Nicolussi,
nascida em Alfredo Chaves no ano 1905,
com produção literária reconhecida
em todo o país,
`originalidade de estilo e audácia de ideias´,
publicou o livro Festa na sombra, depois
de sair da cadeia acusada
de ter participado na Revolta Vermelha
a favor da reforma agrária.
Maria Antonieta de Siqueira Tatagiba,
de São Pedro de Itabapoana,
nascida em 1916 morreu na idade
dos elegidos, trinta e três anos.
Dificuldades económicas a impediram
seguir os estudos de medicina.
Foi a primeira mulher
capixaba
em publicar um livro.
Divulgou, em 1927, Frauta agreste,
de poesia rítmica cheia de beleza.
`A Natureza toda é frescor, louçania…´
Maria Bernadette Cunha de Lyra,
nascida em Conceição da Barra
no ano 1938,
ocupa a cadeira número 1 da Academia
Espírito-santense de Letras,
tem publicada uma obra copiosa e magnífica
onde ilumina as mulheres
e o mundo feminino
com intensa luz própria.
E assim, há outras autoras,
capixabas de raiz, coração ou pensamento,
muito valiosas.
Devo dizer, que entendo
vasos comunicantes dum todo intelectual,
a UFES, mãe nutrícia, as Academias,
o IHGES e a Biblioteca Pública Estadual.
A colaboração faz importantes
ao conjunto
e às partes.
Nestes tempos de incerteza,
ano dois mil e vinte,
quando a pandemia abate as pessoas
em várias vertentes,
Ester Abreu assume a presidência
da Academia Espírito-santense de Letras,
instituição sólida que pronto
cumprirá cem anos.
O dez de agosto a presidente
convoca a reunião
dos acadêmicos de cadeira
e membros correspondentes.
Por isso, todos nós,
para evitar o maior contágio de lugar fechado,
deixamos momentaneamente
a sede da Casa Kosciuszko Barbosa Leão
e ocupamos o Penedo às dezoito horas,
vestindo máscara facial
e mantendo a distância social preventiva.
Tratados os assuntos comuns
cada um fala dos seus trabalhos atuais
e dos propósitos
para um futuro que não acaba
de mostrar a nariz.
Eu exponho a minha conclusão.
Filosofia, metafísica, teosofia, naturalismo,
sociologia, psicologia: entendo a espécie
humana no conjunto e nas partes:
homo homini lupus; amor, primeira
força
metafórica.
Estou bem preparado: me disse.
Mas, ¿sei aonde vou?
Não estou seguro, embora este sonho
quiçá marque o caminho.
No alto da coluna do Penedo,
ao modo de São Simão e os estilitas,
deixo o relato de meu sonho capixaba
para que vocês,
se esse é seu gosto,
possam interpretá-lo.
Vitória ES, através dos séculos.
Índice
PREFÁCIO
. Menção
. Minha Reflexão
. Testemunho
. Analise
PRIMÍCIA
. Dom Quixote e Sancho
OS INÍCIOS
. Espaço-tempo no Universo
. Invenções primeiras
. Meu mar de pedra
. O homem essencial
. Criatura evolutiva
. Experiência vital
. Alforje de convencimentos
. O primeiro impulso
O SER HUMANO
. Homem e fome
. Olhada escrutadora
. Versos para um poema humano
. O sonho do escravo
. Se morre a Utopia
CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS
. Saudades
. As espigas tronchadas
. Expectativas
. Pensamento e ação
A INTEMPÉRIE
. Diluvio na resseca terra da fome
O ECONOMICISMO
. O preço e as coisas
. A economia de mercado
. Defensa dos preços livres
. Concórdia de classes
. O grande grito
ITINERÂNCIA
. O dilatado Chang Jiang
. A mar oceánea
. África
. Roma
. Minha terra
. O Saqueio da Grécia
AMOR, PILAR DO MUNDO
. Encontro
. A vida amanhecendo
. Tu, sempre tu
. Tu, meu presente, meu futuro
. Adolescência
. Ela no meu caminho
. Entardecer na praia
. Amar, amar, amar
. Naufrágio
. Límpida confusão
APONTAMENTOS
. A perfeita unidade dos cinco elementos
. A vitória do desejo
. O mito da amada
. Ode à mulher madura
DESCOBRIMENTO
. Lavrar profundo
. Rapariga de Sacramento
. A realidade imaginada
. O passado renascido
DIVERGÊNCIAS
. Barbárie
. A união e a força
. Venho dizer
. As mães famintas
. Os operários mortos no trabalho
UNIVERSALISMO
. O grande Rosto
. A lei da Relatividade Geral
. O elevado voo do veleiro Nova Era
CONCLUSÃO
. A Pedro Sevylla de Juana, no seu centenário
. O poema interminável
COLOFÃO
. O meu sonho capixaba
Desde o olho que entrega a mente à nostalgia,
subido nas lembranças olho:
álveos sedentos de correnteza impávida,
ladeiras de resseco pergaminho;
e vejo nos páramos de pedra,
valados que governam os caminhos,
escudos não lavrados de casas solarengas,
catedrais, mansões e palácios esplêndidos
dormidos ainda na canteira.
Tudo o que sinto, o que intuo e o que vejo;
configuram minha quebradiça integridade,
uma fonte perdida no deserto.
Lábios, mãos, sentimentos;
resido mais em mim
quantas menos necessidades admito e alimento.
Ser livre é discernir entre miragens e verdades,
viver sem mandar nem ser mandado,
eleger sem a inquietação de equivocar-se;
ser livre é ser, existir, permanecer no alto
não tem a existência outro caráter.
Tão indomável o leão como o cordeiro,
tão obrigados a manter o juízo;
gémeos ambos no domínio de meu peito,
querem cruzar juntos a ponte do destino,
vida e morte nos extremos.
O porvir depende do entusiasmo ativo
que a infatigável vontade imprima,
à firme decisão de caminhar num só sentido,
superando os obstáculos acumulados um dia e outro dia:
inundações, furacões ou sismos.
A exceção não confirma a regra:
gota de sangue sobre mar de leite
a modo de evidência.
A nega, a impugna, a rebate;
a contradiz, a invalida, a rejeita;
altera seus termos constantes,
a faz abrir postigos e muralhas,
e se converter numa lei mais grande,
-gradações da cor rosa, exempli gratia-
onde caiba aquilo que se dá mais tarde.
Atravesso a névoa enchida de mistérios;
como dardos noturnos são meus olhos,
e vão burlando cercos.
As admoestações pérfidas,
como sou,
me fizeram.
Me fizeram como sou, bom e mau,
as oportunas palavras de alento,
o reiterado exercício quotidiano,
a dificuldade de entendimento
e a persistente oposição do arcano
a explicar seu secreto.
Reparto numa cesta a ração de matança,
o caldo num caldeiro;
e tantos amigos tenho que não bastam
as quinze arrobas do cerdo
O rígido me atemoriza: parapeitos e barreiras;
tenho rompido formas: frágeis vasilhas e troqueis resistentes;
põem-me em guarda, me entrincheiram,
o inflexível e permanente.
Constante agitação de correntezas,
barreira de flexíveis colinas,
despensa que se espalha e regenera
o veleidoso mar me surpreende e me cativa.
Contemplo o céu acolchoado de nuvens de algodão,
concretas figuras modificadas a cada instante pelo vento:
cúmulos em forma de monte, de pássaro ou de flor;
nimbos feitos rostos, cavalos, blocos de gelo;
estratos que excedem a margem da imaginação.
O que vai para além do meio-dia
e traspassado o crepúsculo não morre,
o que acompanha ao tempo em sua rotina,
se apodera do homem
o minora e o domina.
A evolução, a troca e as esperas
o salto, o retrocesso, a mudança,
e o que modifica sua essência,
reclamam minha atenta vigilância.
Encomendo minhas viagens ao tímido veleiro
assentado em ondas sucessivas,
à asa frágil do avião ligeiro.
Água ou areia,
o incontável é de minha atenção objeto,
os areais de estrelas
do cintilante firmamento.
No fugaz tenho meu solo,
o fugidiço me cede seu refúgio,
coluna, parede e teto.
Pelo momento ao menos
não creio em nada fixo;
só no efémero,
no temporário, fio.
Reviso cem vezes o já feito,
as ponderadas teorias,
receio de meus acreditados méritos,
de minha fama merecida;
hoje duvido novamente das lorotas
nas que ontem cria
e me convenço de verdades novas
que amanhã serão substituídas.
Do permanente fujo:
da arrogante vida eterna.
do seu constante influxo.
Valdepero, Palencia, Valladolid, Barcelona, Madrid y La Habana
O sonho do escravo
Do outro lado da muralha,
vem a sua queixa:
Imitando uma garça,
me chama a negra.
No barracão de machos,
responde meu corpo, se estreitando:
ofídio humano
por entre catres ferrados.
Nas janelas altas se inicia
a claridade tênue da Lua,
ante a porta trancada os vigilantes vigilam
e a matilha ulula.
Segismundo me nomeiam,
e trabalho de escravo no engenho de cana
levantado a umas léguas
da cidade de A Havana.
Finaliza o ano mil oitocentos e quarenta,
novembro já avançado;
e tenho, depois de longa espera,
meus direitos ante o amo.
Me iniciará na religião para receber o batismo e ser doutrinado
porque o homem e a viva imagem do Criador amado,
patrão dos amos, e capataz de capatazes o nosso Deus branco.
Nos dias ordinários, as horas de trabalho serão nove ou dez
e durante a colheita, ou se fosse preciso,
não mais de dezesseis
por princípio.
Nos domingos e festividades
após missa trabalharei duas horas
asseando e ordenando a casa grande.
Não mais de duas horas, salvo que haja
tarefas urgentes
ou estejamos em tempo de safra
Devo obediência às autoridades,
reverência aos sacerdotes, respeito aos brancos
e boa disposição com meus iguais.
Duas comidas terei, ou três se fizesse falta:
inhame, mandioca, seis ou oito
batatas-doces ou bananas;
oito onzes de carne ou pescado,
e quatro de arroz, hortaliças,
farinha ou feijão branco.
Gorro ou chapéu receberei em maio e dezembro
mais uma camisa e um calção;
a cada dois anos jaquetinha de baeta
e em janeiro um cobrejão.
As crianças, até apontar dos dentes nas gengivas,
receberão comida ligeira,
camisas de listrado, e nas horas de triga
ficarão no alpendre à incumbência
duma ou várias
mulheres negras.
Irei acompanhado do dono se devo sair da fazenda,
ou levarei um escrito que autorize a saída
e descreva as minhas senhas.
Qualquer está no seu direito se me delata
porque caminho só ou não me ajusto
à rota exata
do salvo-conduto.
Quando eu me comporte mau por excesso ou por defeito,
receberei cárcere, grilhão,
corrente ou cepo;
sempre nos pés, nunca na cabeça,
e os açoites não passarão de vinte
na sessão completa.
Se uma escrava dum engenho novo
acedesse a se casar comigo,
a comprará meu dono
e comprará a seus filhos.
E quando nos casemos,
do barracão a um bohío
passaremos.
Tudo fica regulado, já conheço a lei,
e sei que tenho direitos,
desde ontem.
Certamente, doravante,
cumpridas as disposições do Governador Valdés,
a minha vida pode ser invejável.
Nas escuras noites
depois de rezar a Deus pelas autoridades,
os sacerdotes,
donos e capatazes;
depois de pedir pelos brancos e meus irmãos,
esses escravos de cor, submetidos e indomáveis,
sonho que sou um príncipe
abraçado à negra minha,
e quando sejamos livres como deve ser toda a gente
ocuparei o trono que me corresponde por justiça,
sendo eu um rei indulgente
e minha amada a melhor rainha.
(Condições desumanas qualquer diria
mas o triste é que há trabalhadores
que recebem pior trato a cada dia.)
La Habana, 2010
Se morre a Utopia
Nos tempos presentes da nossa vida
quando a esperança é tão efêmera,
e vive em desencanto diluída,
quem oferecerá um futuro cobiçado
se morre a Utopia?
Quem descobrirá a poesia,
flor entre espinhas nas sarças,
veleiro de papel à deriva?
Quem porá imaginação nos grafitos
– engenho das frases –
que derrube barreiras e recintos?
Que exemplo estimulará nos jovens a fantasia,
que façanhas relatarão os avós aos netos,
quem defenderá o povo da constante injustiça,
quem restabelecerá o equilíbrio do dessossego,
quem se oporá à insaciável avarícia
dos que acumulam montanhas de dinheiro?
Quem ousará avançar por novas vias,
quem se oporá aos interesses dos mais interessados
que será da diversidade de teorias
quem estará de nosso lado,
se morre a Utopia?
Quem reduzirá as insuperáveis diferenças
que separam falcões de pombas cada dia,
quem amará do homem sua quebradiça essência,
quem semeará a paz, o perdão, a valentia,
o amor, a liberdade, a convivência
se morre a utopia?
Quem impedirá que deem forma a nossa argila
em desumanos moldes
os que fazem ferramentas das vidas;
quem acolherá as exceções,
quem será do diverso garantia?
Quem nos livrará da inocência,
quem nos sacará da estatística,
quem sobreviverá ao sistema,
se morre a utopia?
Madrid 1974
CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS
Saudades
Eu tinha uma mula parda,
forte, mansa, nobre
ousada.
E tinha um arado
com as rabiças de faia
e o timão curvado,
vertedora extensa
e uma relha aguda
para abrir a terra.
Eu tinha uma mula parda
e tinha um arado,
e juntos, os três,
íamos ao campo;
e no campo abríamos sulcos
e nos sulcos semeávamos o grão.
Eu tinha um plaustro,
varas de roble velho
eixo temperado,
e seu movimento
me aquietava o ânimo.
Eu tinha uma mula parda
e tinha um plaustro,
e juntos, os três,
íamos ao campo,
trazíamos a sega à eira
e a parva era um pão dourado;
oro a palha seca
oro o grão.
Eu tinha uma mula parda
e tinha um arado,
eu tinha uma mula parda
e tinha um plaustro;
e a terra me dava
cem grãos de ouro
por cada grão.
Madrid 1963
As espigas tronchadas
O nó central da inclemência
se resolve em verdes prados,
em pálidas cores o verão se resseca
murcha-se o outono em ocres arrebatos
em folhas amarelas,
em crostas, em bagaços.
Ante as instáveis gotas de orvalho me amoleço,
ante a diminuta névoa suspendida
gelosia natural do Firmamento.
Granizo, escarcha, chuva ou neve
persigo a água cristalina
regeneradora e renascente.
Quero descer na catarata
eflúvio ser de seu vapor evaporado
ser espuma da água fustigada.
Cai gota a gota o chuvisco
passo a passo, rama a rama
desfalece ritmo a ritmo
grão a grão se desgrana.
Moldou o rio seus meandros,
leito aberto,
seixos rolados;
cavalgou a madrugada sobre formas mais precisas
fomos muitos para as escassas lebres
e levantou irmão contra irmão a cobiça.
«Que iniciem o ataque os arqueiros
acometam depois os de a cavalo
terminem corpo a corpo os infantes a refrega»:
com agressivo brado
arengou o estrategista na traseira.
«Os mortos recolhidos atrás da linha de partida
não atingirão o ansiado paraíso»:
sentenciou iracundo o druida.
Não houve vitória que admitisse terna os pacíficos
feridos pelas armas dum e outro bando
nem leito de plumas
que acolhesse os inválidos.
Foram pícaros os que reivindicaram o triunfo
conseguido pelos mais ferozes;
e para premiar aos heróis inúmeros
faltaram prezados galardões.
Bandeiras, tambores e trombetas,
páginas abertas dos livros;
cada um no seu sítio: luta ou cautela
campo de batalha ou caminhos.
Tinta indelével das plumas,
sentimentos, intenções, desígnios:
tudo o aniquila a crueldade das disputas.
Arrasa a guerra povoados e colheitas
afasta os horizontes de chegada
abandona terrenos abertos pela relha
arranca corações robustos de lava
separa os potros da égua
mata a vida na vida engastada
tergiversa a liturgia, e o mel das abelhas
pelo solo esparrama.
Cada punhado de terra oculta uma gota de sangue:
veias confiadas no raso
artérias surpreendidas nos vales
e no mais elevado do alto,
a desmedida ambição culpável.
As cavilações do pensamento libertado
produziram duas teorias contrapostas,
e cada uma delas formou um bando.
Carregada de pessimismo a primeira se expressa:
o mundo é redondo para que nosso êxodo não conclua;
a outra trata ao Demiurgo com enorme indulgência:
para acolher nossa marcha sem final
criou a esfera.
Atuam enfrentadas
porque são simétricas.
Infundo mansidão aos cães que uivam os lobos,
aos lobos que atacam os homens
e aos homens inimigos dos uns e os outros.
O meu é tender pontes,
pesquisar o móvel do desejo,
medir a altura das visões,
analisar os ritos e os gestos.
Em discrepantes olhares e caracteres,
sou conciliador e procuro pactos;
atinjo a necessária síntese
acercando as vontades aos atos.
«Luta até o equilíbrio» é minha divisa,
e é minha assinatura meu nome lançado numa seta,
em procura da cruz da harmonia,
indecisa, vacilante, perplexa
equilibrada, ativa.
O progresso cifro em progredir,
em marchar para o objeto perseguido,
o arranjo que pretende por inteiro o existir,
instável contrapeso sucessivo.
Espigas tronchadas, a peripécia
da existencial discórdia
assim mesma se tempera
seguindo pontos de vista posteriores,
simetria das lembranças mais profundas
fazendo-se simples questão de linhas e cores
aromas, pressentimentos e colunas.
Valdepero 1963, Camelford 1982, El Escorial 2017
Expectativas
Uma em direção a outra,
movimentando-se em espira acelerada
duas estrelas de nêutrons chocam
dando milhares de giros por segundo,
e produzindo, um tempo ínfimo depois,
o consequente buraco negro denso e profundo.
Faz disso um tempinho escasso
só cento e trinta
milhões de anos.
Não posso atrasar a escrita
de meus poemas, neles
há desacordos e dicas
muito urgentes.
Cuidado com essa paz que começa!
Pode ser taimada:
tão propícia como semelha,
se arma
e se rearma nela,
rancor e fogo,
a ominosa e execrável guerra.
Se queres a paz –aconselho-
acaba com as causas da guerra,
fortalece e consolida o sossego,
termina com as injustas diferenças.
Régulo privado de seu cetro,
acentuada exaltação de percepções,
observo minha conduta desde dentro.
Pétala breve conquistada,
ativa
brisa,
propícias asas.
Nas incógnitas que a lógica desvela,
na intuição apoio os convencimentos,
porque os sentidos mentem como regra
e me informam buscando seu proveito.
Somarei, por se não bastasse o já dito,
minha constante suspeita de imaturos erros,
esquecimentos de vulto e desvarios,
que ainda não foram descobertos.
Fixam os livros a memória como os pinos as dunas,
permitem ver do passado sua imagem atenuada
e projetam sobre o hoje a calculada presença futura.
Neles leio que a pedra se fez futuro,
que o ouro foi adorado, e a palavra
-meu postremo refúgio-
resultou mil vezes profanada.
Minha visão harmônica do caos,
ordenada pelo comum sentido,
e a evolução do pensamento apoiada nos ensaios,
me ditaram nos ouvidos
um evangelho santo,
credo positivo,
curta relação de mandatos.
Consumirei recursos restauráveis,
mais planta que animal,
calor ou minerais;
capazes de crescer
uma, outra, outra
e outra vez.
Matérias primas a meu alcance,
dos bens que possuo: ferramentas, vestidos, alimentos;
utilizarei o indispensável
libertando o resto.
Volume sobrante, envoltório, casca ou pele,
residuais elementos
epiderme,
aproveitarei os desfeitos.
Cedo tive pensamentos próprios:
de princípios, sensatez e dúvidas,
enchi cofres honrosos.
A metade do homem indócil que me integra,
defende um sim do mais sólido;
e o resto após um não sem retorno se entrincheira.
Do anverso branco até o reverso negro,
minha vontade se encolhe e se dispersa,
compartilhando o eterno drama do Universo.
Aguda espinha,
interior sedoso;
sou contradição,
perseverante paradoxo.
Vivo a heroica, real e diária vida doméstica,
do eu inconstante, da pessoa altiva,
emocional, cândida e romanesca;
afetuosa, plena de preconceitos, agressiva,
servil, soez, venal e incorreta.
E a vida da razão e o pensamento, universal e nivelada,
que tudo o mede e o pesa num momento,
perfeita, lógica e quadrada;
facultada para destruir no julgamento
os firmes pedestais e as estátuas sólidas,
capaz de despir de roupagens alheios
a verdades e mentiras em infernos vizinhos da glória.
Tenho saído à aventura sem mochila,
falto dum amarre que me una ao inerte,
naufragada barca, águia caída,
recordando o exemplo que dão as sementes:
capazes de esperar no deserto, em condições extremas
da sua própria fecundidade conscientes,
seguras de si mesmas,
a uma sozinha gota de água,
da eternidade inteira
a parte necessária.
Nosso próprio Sol, centro do sistema pequeno
que nos atrai e recusa fazendo possível a existência,
ao transformar todo seu hidrogênio em hélio,
andando o tempo irá modificando sua essência
até ser um gigante vermelho.
Se expandindo mais e mais ardente,
dará fim a seus planetas
sendo eles de todo o processo inocentes.
Mas desastre tão extraordinário
nos permitirá acabar as tarefas pendentes sem pressa
porque ocorrerá dentro de milhares de milhões de anos.
Valladolid, Barcelona, Madrid, 1970
Pensamento e ação
A vontade sobe ao estrado
e arenga a todo o organismo:
rins, coração e baço,
incitando-lhes a suprir qualquer declínio
para desenvolver o potencial inato.
É preciso mencionar a importância das mãos,
com elas elaboro excelente artesania,
ferramentas, arreios para o gado
e os conformes traços da caligrafia;
enérgicas aceitam compromissos, assinam pactos,
e sedosas desenham a tibieza das caricias.
Sem atingir os extremos do eremita ou o asceta,
dedico algumas horas a meditar meu pensamento;
nem flagelo minhas carnes nem me nutro de ervas,
gozo e sofro acompanhando a meu tempo:
sou um filósofo que avança na névoa.
Com as exceções assumidas,
a beleza da ordem é minha meta,
liberdade distanciada da forçada simetria.
Cabem em meu mundo figuras desiguais:
quadrado, triângulo, circunferência;
todas as formas naturais
as ideadas e suas mesclas;
e das matérias intelectuais,
qualquer ponto de vista me interessa.
Não há que marcar limites ao progresso
para além dos que estimem a experiência,
no dia de manhã, o bem-estar dos diversos;
porque somos um elo da cadeia,
o fio condutor da prudência e do atrevimento,
o fluir do rio e o alimento na despensa
Sou o que lavra a terra e a vazia de riqueza,
quem se submerge até as pérolas e os arrecifes coralinos,
aquele que transforma a matéria prima em novas peças
e o servidor de seus vizinhos.
Cuido o semeado até a sega,
descendo à mina, pesco barbos no rio,
trabalho de sol a sol na telheira;
sofro fome, sede e frio,
e meu corpo resiste nu as doenças:
sou o braceiro desconhecido,
o novo atlante que porta o mundo sobre sua cabeça.
Que signo acunharei nos corações humanos,
que contraste darei ao valor da sua valia,
que afastados limites porei ao terreno parcelado,
que listras traçarei que não dividam;
que som coincidente com o sim em todos os ânimos
inserirei com energia?
Machados de sílex lavrados por gorilas,
azeite para as cinco lâmpadas das virgens néscias,
o segundo coração que o amor do homem precisa,
os magníficos versos do décimo livro da Eneida,
uma cópia a seu tamanho da Capela Sistina;
a contagem de minha vida expressado em derrotas,
luzes extinguidas que marcam ainda o rumo dos navios,
ilusões recebidas pelos filhos e a esposa;
sentimentos azul cobalto confundidos,
datas erradas da recente história,
os cinzentos temores e a paisagem proibida,
colmam o espaço destinado à memória.
Dão forma a minha soberbia
alongados estambres amarelos,
orquídeas das mais azuis pétalas,
flexíveis juncos e ilustrativos rododendros.
Me surpreendo
vazio
em cem aspectos;
pálidas facetas dum brilhante mau polido
que encontra, nos outros, complemento:
família, amigos,
companheiros
e contíguos.
Por aceitar os demais tal como são em verdade
e ajudar a que sejam como anseiam ser,
se desvive minha débil vontade
arrastando meu volúvel proceder;
por formar um critério inteiramente próprio
e procurar a síntese constante e o equilíbrio fiel.
A aparelhada mula e os pardais livres
o céu inconsequente e a sacrificada terra:
com o afetuoso coração preservo minha origem
com a reflexiva e equânime cabeça.
Palencia, Valladolid, París, El Escorial
INTEMPÉRIE
Dilúvio na resseca terra da fome
Com uma pena de cálamo partido,
o homem desguarnecido se acastela,
pó em água diluído,
tinta viscosa surgida da testa.
É uma pluma somente
e a branca superfície do papel
em seta, em adaga a converte;
a palavra que perfilo é um ipê
lançado contra o céu inexpugnável e inclemente,
para desaguar, face e invés,
seus transbordantes recipientes.
Vão sendo as seis e o ativo povo
-do acampamento alçado num córrego ressequido-
em círculos de pedra aviva o fogo,
e com a tranquilidade de quem ignora os perigos,
apressa lidas diferidas pelo breve ócio
ou desprega lembranças dos tempos idos.
Placas de lata formam tetos e paredes,
entulhos de algum derrubo, tabelas rompidas,
frágil refúgio destinado a proteger da intempérie.
O vento avisa com seu assobio ralo,
um cheiro de crisântemo vivo
vem do Norte carregado de presságios:
calaram-se os grilos
e os pardais agitados
revolteiam em círculo.
Recolhe raios o sol, embainha sua soberba,
retrocede e foge dos horizontes nublados
embutidos em armaduras pretas,
guerreiros sobre bíblicos cavalos
que manifestam uma cólera densa.
Urgidas galopadas das pernas,
a primeira gota inaugura o desconcerto,
cauta emissária das companheiras,
as que ocultam o sol fátuo e incerto
esperando instruções mais concretas.
Chove a negrura que a perspectiva afasta,
nos confines se confundem as linhas de chegada e de partida,
piscando resplendores se agita o deus da borrasca
visos perversos que agigantam as vistas,
em uma tarde de verão bem bastarda.
Presto o altar, a oblação desconhece os desígnios;
procissões de nuvens chegam ao lugar dos fatos
seguindo a ordem imutável dos avisos.
As temperaturas elevadas,
necessitadas de paciência,
perfuram a barreira da exígua enramada;
os indómitos vales desfocados centelham
e desde o alto das nuvens altas
desordenadamente desce a tragédia.
Descobre o olho torvo em solitária cavalgada,
o temor oculto dos campos às ingratas sementeiras;
neste lugar o mau augúrio aguarda,
em toda parte a ferida fica aberta,
por ali chega a morte acaçapada,
suspeitada e, sem embargo, manifesta.
As gotas compõem milhões dilatados
e uma sozinha é vida no deserto,
adição do mar não desbordado;
uma gota não é perigo verdadeiro,
nem cem juntas, nem mil vezes um vaso.
Com quatro nuvens irritadas se forma uma tormenta,
três tormentas cabem em um vale,
são três os vales convergentes, e mais de quarenta
as nuvens que acumula a grande nuvem resultante.
Toneladas de água vai ressoprando a galerna,
ingente quantidade de metros cúbicos desprendidos da altura,
uma fortuna se cai no lugar da carência:
terra resseca e esquartejada, balbuciante agricultura,
feijões, tubérculos, centeio, aveia
erva agostada e murcha,
alimento que salva da morte verdadeira
protegendo da fome uma temporada curta.
Apedrejam as nuvens com ouro a puna e a savana,
centos de milhões de onças caem no absorvente solo,
valioso pasto para milhares de vacas
que morreriam num jejum novo.
Água vai! Exclama o céu perto da porta,
e a nuvem total, o universo inteiro, as líquidas esferas,
abrem as comportas e em menos duma hora
cai destrutora a água chegada de todos os planetas.
Os pés não encontram solo, se dissolve a terra,
todo é líquido solto e sua força de arrasto,
arrasta rolando as roladas pedras.
Os ramos se desgalham de choupos e albizias
troncham-se os caules das plantas,
o deus da morte exige um centenar de vítimas
e a dor das sobrevivências rasgadas.
Há famílias abaixo, pessoas de todas as idades,
borbotões de sensibilidade e de ternura,
cachorros e gatos em plena liberdade,
utensílios, úteis de pesca, ferramentas rústicas,
amor à Natureza muito grande.
Se volta contra o homem o enxoval diário,
arrasa arrasado e é espada;
é martelo, é estaca, é maço;
é machado violento, é cortante navalha.
Resistem os valentes esbanjando brios
e agonizam em tentativa vã de minorar o desamparo
impelindo os mortos aos vivos
enquanto escapam os covardes ficando a salvo.
Troca-se a terra em pegajoso limo,
formam dique as lenhas e as pedras,
fixação de mares bem nutridos;
e num instante que os fados desprezam
escapam os desbordantes fluidos.
Exaltados relinchos de cavalo
das gargantas irrompem fugitivos,
bramidos de touro ensanguentado
e desgarradores gritos
nascidos do sofrimento desumano
elevam sua queixa até o divino.
É angustiosa a impotência,
e depois do instante eterno que dura a agonia,
insultam os feridos a quem executa a sentença.
A morte forma feixes de corpos:
mãos unidas às mãos,
braços suspendidos dos pescoços,
rostos pegados aos lábios,
dentes mordendo o vigor afetuoso
do amor apaixonado.
São alicerces os troncos em carne viva abertos,
suportando o peso dos muros derrubados,
dos precipitados tetos.
As lascas, incisivas como alfanjes,
e as árvores arrancadas da terra mãe,
são armas para o descomunal gigante
que vomita a água dos sete mares
sobre pessoas acostumadas ao abuso do grande.
Quando o céu aclara sua cor e o temporal decresce,
oferecendo evidências ficam os despojos:
cabeças aplastadas por pedras inocentes,
extremidades presas debaixo dos escombros,
ventres inchados sobre desnutridos ventres,
corpos oprimidos cobertos de lodo.
O lodo, o lodo, o lodo detido;
o lodo desprende de seu seio improvisado,
a expectativa de encontrar algum respiro
e o fedor dos restos demudados.
Os cadáveres descobertos pela água,
são empurrados rio abaixo,
até o espaço que acolhe na enseada,
o barro e a madeira, os seixos rolados.
O amanhecer acorda destruído:
a batalha desigual -só um bando-
tem deixado um esplendor despido,
coberto por membros descarnados,
de impossível retorno aos caminhos.
Nos morros inclinados, nos rochedos,
nas sumidas adjacências,
nos álveos lisos dos rios secos,
alçam os párias da terra,
seus arraiais efêmeros,
as frágeis vivendas.
E o céu castiga
sua extrema pobreza
e a ousadia.
Diversos lugares desde o ano 2011
ECONOMICISMO
. O preço e as coisas
Antigamente, o homem era
antes de todo
sua ascendência.
A tribo era pátria, família, amparo e despensa.
Eram comuns a propriedade e os projetos,
amigos e inimigos, o trabalho e a colheita.
Se compartilhavam sentimentos
tristeza e alegria,
e o individual não se mostrava aberto,
apenas florescia.
Com o tempo a tribo se foi diluindo,
a bonança permitiu às pessoas
mostrar o personagem escondido.
Pessoa e personagem se fizeram gente entre as outras,
e a gente descobriu, inventou, modificou,
pôs preço às coisas.
Quando tiremos o preço das coisas
a gente sofrerá como se lhe tirassem as coisas
porque não sabe separar as coisas
do preço das coisas.
Quando tiremos o preço das coisas,
a gente albergará receio e dúvida
em frente das realidades novas,
pois apreende na primeira infância
– saber sequestrador da candidez mais valiosa –
que antes ou depois todo se paga.
E se, bem visível na etiqueta,
não se mostra destacada a valia,
escrita em caracteres claros,
com sedutoras cifras,
se deve a que o preço é alto.
Quando tiremos o preço das coisas
e as coisas se mostrem sem vestidura,
a gente não reconhecerá as coisas,
porque sabe que o preço é para as coisas
como a forma, a cor, o cheiro ou a textura
que devem ter todas as coisas.
Quando tiremos o preço das coisas
a gente ignorará a ordem das coisas,
equivocará a comparação entre coisas
e será um caos o universo das coisas
para a gente que ordena as coisas
pelo preço que têm as coisas.
Mas se queremos que as pessoas
feitas gente podam lograr a muda
da sua maneira de ver as coisas
e avaliem atributos como a beleza nua
a utilidade prática,
o som do vento ao abraçar a superfície muda
a doçura das últimas camadas
a brandura
a natureza da substância originária,
seu valor intrínseco
sua duração, resistência e força
devemos tirar o preço
que um dia se pôs às coisas.
Quando logremos tirar o preço das coisas
– acontecimento histórico memorável –
do indivíduo diluído na gente, renascerá a pessoa
coração animado de sístoles e diástoles.
Madrid Mercado do Rastro 1967
A economia de mercado
Crosta, manto e núcleo, meridianos e paralelos,
translação e rotação, movimentos pares e impares
a esfera vai perfeiçoando a sua rotina
entre instáveis equilíbrios e jogos malabares.
Tendo recorrido a Terra em elipse ou em círculo
quatro mil e quinhentos milhões de anos,
não se pode impedir que a economia de mercado,
do dinheiro canibal suave eufemismo,
soltando a nosso planeta do atracadouro espacial,
o converta em marioneta de seu dedo,
novo centro do giro sem final.
Com o seu influxo, a economia de mercado
originou a deriva dos continentes;
com o seu único influxo move, a medidos intervalos,
as placas tectónicas; e com o seu influxo onipotente
aviva vulcões e sismos, aparentes flagelos espontâneos
que a economia de mercado, imparável e insistente,
aproveita para extrair um bom bocado.
Nos tempos de Pangeia o Algarve acariciava
as ilhotas de Florida,
e o rochedo de Ifach se adentrava
nas terras virgens
da Guiné africana.
A união fazia fortes todos os espaços,
e nada podia contra eles
a infatigável economia de mercado.
Foi então quando, perseguindo soluções,
cunhou a tão repetida sentença:
«separa e vencerás»,
atuando em consequência.
Empuxão, arrasto e muito afinco
forças centrípetas e centrífugas:
a empurrões ciclópicos míticos
conseguiu avançar separando
um trás outro, sem concerto estabelecido
os territórios irmanados.
E há mais, muito mais: nas noites escuras do trópico,
se servindo de encadeados ilusos, a economia
de mercado arranca o magma do puro núcleo,
e o saca fora para vendê-lo de madrugada
em armazéns clandestinos bem ocultos
ao melhor oferente sem mais nada.
A economia de mercado vai a toda pressa,
e acelera o passo do Universo;
prontidão, diligencia, impaciência
de modo que, quanto ocorria em milénios,
sim danos para as pessoas serenas
agora ocorre em séculos.
Se produzem assim múltiplos desequilíbrios
que a economia de mercado
assenta a bom preço e ao vivo.
Ocorre que o destinado a morrer morre,
alimentando outras vidas,
a sua vez pasto, sem consciência ou conscientes,
da economia de mercado y as malfeitorias,
algumas de domínio público e voz corrente,
e outras ignoradas por desconhecidas:
silêncio de informados inermes
freados pela cobardia.
Genebra 1990
Defensa dos preços livres
Ferramentas do acumulador, Midas moderno,
para se enriquecer ainda mais, se fora possível,
sois imperativos, admirados preços,
certamente livres de qualquer código,
legalmente não tendes teto,
podeis chegar ao topo
alcançando o alto do firmamento.
Sois pequenos no campo agricultor:
alguns sacos de lentilhas,
laranjas, girassol, sementes, maças, arroz,
leite de cabra, ovelha ou vaca, colheita reduzida.
Insuficientes sois verdadeiramente
em dolorosas ocasiões y diversas horas,
para pagar o suor original da gente
de braços fortes e cabeça pensadora.
Exíguos, também, no ateliê de trabalhos elementais
albergue de ideias, afazeres e ilusão
feitos à mão, manuais,
mãos e cérebro completando sua função.
Não obstante, vocês, preços livres, produzindo dor
cresceis e cresceis nos enredos do itinerário
que leva à loja e ao consumidor.
Nasceis cêntimos em qualquer atividade humana,
mas quando a tecnologia participa no processo
filha e servidora das grandes corporações sem alma,
então vos multiplicam por cem ou mil,
tanto quanto aceite a necessidade humana
seja certa, real e verdadeira
ou simplesmente suspeitada:
por exemplo as vacinas contra a pandemia,
armas ditas defensivas
e as energias fósseis
tão prejudiciais para a vida.
Nessas ocasiões, cada vez mais frequentes,
ao final de trajeto tão ziguezagueante
alcançais orgulhosos as altas nuvens
e as estrelas distantes.
Vocês, preços livres, tão difamados
sois inocentes do enorme estrago produzido
os acumuladores são os culpáveis exatos.
2023 Agora em quase todo lugar
Concórdia de classes
Hic et nunc
Corpo de pão e leite, cabeça de bronze:
sinos fundidos
com canhões.
Ah! Minha Espanha, minha terna e impetuosa Espanha
paulatina síntese atroz deste Planeta,
lugar onde ao nascer estive à mercê da Descarnada
e talvez morra hoje de dor y de impotência.
Exposição
Era quinta-feira, dia catorze, na manhãzinha,
de repente, a través de informados habitantes
conhecemos a notícia
que assegurava a possível imortalidade
de ricos e ricas.
Assim soubemos que, alcançando em euros
os cem milhões e pico
de capital uno o diverso,
tinha decidido Deus que os ricos mais ricos
viveram pelos séculos dos séculos.
Eles contribuem mudando
de simples maneira
de fato
sem demonstrações de festa
a justiça distributiva
por uma nova inteireza
também justiça
que logo se nomeia
justiça cumulativa.
Uma ligeira mudança de palavra
que da carta de natureza
à função contrária.
Sentimos, e merece ser destacado,
o maior contentamento
de nossa pobre vida de pobres natos,
contribuintes netos
do enriquecimento crescente e bem crescido
dos permanentemente insatisfeitos
os considerados autênticos ricos.
Alegria sim, muita, inenarrável
-idosos, adultos e meninos-
pois ao fim, nosso esforço íntegro e constante:
um dia após de outro, comendo o mínimo
para enriquecê-los de modo culminante,
cumpriu seu elevado objetivo.
Ficava bem claro,
não éramos tão inúteis.
como nos fez crer seu descaro.
Crise
Houve multidão de comentários
e diversas especulações;
grande empenho interessado
nas pessoas maiores,
pouco, muito pouco enfado
entre os mais jovens.
Inclusive se falou da existência
de letra pequena no acordo,
possível intervenção da experiencia
do intrigante Demônio.
Negociação a dois: Céu e Inferno
que acrescentasse condições críticas,
difíceis de cumprir, por exemplo:
que estivesse limitado acima.
Só a maneira de modelo:
quando os milhões atingidos
sejam cento e vinte, vinte e cento
pelo capital do rico,
o direito da imortalidade recebido e aceito
se perdesse no início.
Imaginando o apressado
processo de enriquecimento
e o conseguinte freado
-os sofismas: essas esmolas repentinas
carecentes de continuidade,
e a volta ao crescimento já sem correria,
com a apropriada sobriedade-
soltávamos uma risada muito ativa.
Sossego e presentes
que não devem ser excessivos,
já que se trata de fazer permanente
a difícil harmonia, o equilíbrio;
pois si a fortuna descende
de cem milhões limpos
a morte levará os desafortunados ricos
a seu covil estreito e frio.
Acostumados a ter sofrido
um averno de angústia pelos altibaixos
de nossa subsistência de exíguos;
lamentamos ao instante, os necessitados,
tão insólita situação, pois nela vimos
o insofrível tártaro
incorporado na ansiosa vivência dos ricos.
Desenlace
Por se resultara correto em sua essência
o rumor difundido,
muitos acumuladores sem paciência
diminuíram seu extraordinário apetito
adotando o meu lema:
«Luta até o equilíbrio».
El Escorial 2017
O grande grito (Desequilíbrio insustentável)
«Nos querem emocionais para nos dominar,
mas nos terão pensadores resistindo.» (PSdeJ)
Os inícios
Gases, líquido, sólido
espaço-tempo,
ar, água, terra, fogo.
O hoje tem uma lenda
calculada em treze mil setecentos
e setenta
milhões de anos completos.
Rotação e translação iam
os mundos a seu devido ritmo
satisfeitos da alcançada rotina
atraentes e atraídos
cantando a universal cantiga
como estava previsto.
Matéria e energia,
em sua cópula engendraram,
sístoles e diástoles,
o inicial sopro de vida.
As causas
Emoção e lógica caminhavam juntas
–humanas complementárias faculdades–
unidas sempre por vales e planuras,
e a inteligência se pensava invulnerável.
Às vezes o pensamento parecia tomar a dianteira,
até que o sentimento avançava decidido
alcançando uma vantagem manifesta
que tentava manter como objetivo.
Assim se produziram os tristes desafios,
começaram irreduzíveis as pendências,
teve fim o necessário equilíbrio
alimentando-se o ódio com as guerras.
O vão ganhou protagonismo nos medíocres,
cresceram os emocionais entre os indivíduos
começou o transvase do comum para os acumuladores
e os pensadores foram doravante perseguidos.
As consequências
Meu grito é um grito de desassossego
macho erguido e fêmea valorosa
cidade ou campo aberto
ruas, praças e rondas
vale, ladeira ou cerro
as mãos em megafone sobre a boca.
Meu grito é o grito do dia e da noite
neste pequeno globo tão errado
oito mil milhões de vozes
fundidas em sonoro abraço.
Meu grito é o rugido do tigre e a baleia
de vulcões e sismos
o grito da lava interna,
do vento que inflama as velas dos navios
o desgarrador alarido do furacão e a galerna.
Meu grito é o grito da massa vegetal
grito de araucária, choupo e catuaba,
dos cactos do deserto e o mangue do mangal;
um coro enorme que eleva
sua voz descomunal.
Meu grito é o grito da terra estável
e do líquido mar,
das nuvens cambiantes
e o azul desigual,
a queixa suave
e o bramido estelar.
Meu grito é o grito animal
o grito dos vegetais
e das pedras sem lavrar.
Planetas habitados e infecundos
meu grito brota do desespero universal
exigindo ao suposto demiurgo
sem novas perífrases nem desculpas vãs,
que aclare se o domínio do privado sobre o público
goza do seu apoio ou tem perto o final.
Torre da homenagem, castelo de Valdepero 2011
ITINERÂNCIA
O dilatado Chang Jiang
A delicada fugacidade da arte,
a experiência que abastece à filosofia
e o ritual religioso da natureza respeitada
convertem a Shangai em ponto de partida.
Tentamos subir pelo Chang Jiang contracorrente
-apaixonados, mitológicos, gigantes-
decididos a atingir a primitiva fonte.
Deixamos o refúgio cálido do porto
-capulho de seda, útero de larvas-
aos ventos fechado, à esperança exposto.
A Torre do Tambor de Nanjing,
a Púrpura e o Ouro do Outeiro alto,
conquistam a mirada surpreendida
dos passageiros no barco.
Recebe-nos Wuhu hospitalário,
e duas semanas depois,
as três cidades de Wuhan,
lago do Leste e as Colinas,
pavilhão do Poema, memória de Qu Yuan.
Translada a ponte sobre nossas cabeças
a cem mil operários
em cem mil bicicletas.
Que rápida parece ao lado dos juncos a vela
a pesada barca de vapor que nos mostra
Chongqing entre a névoa,
onde comemos pato,
douta preparação de sua cozinha
em conjunção perfeita de cheiros e sabores
cores e textura que leva à delícia.
Pisemos forte o lamaçal!
que treme a nosso passo o Rei dos Dragões!
profundas pegadas de cavalo, de peludos yaks,
redemoinhos das Três Gargantas
desfiladeiros insondáveis, pântano e lodaçal.
Ribeira desbordante de gentio atarefado
canais cobertos de lotos perenes
fauna abundante de búfalos e gamos
asnos selvagens e leopardos das neves,
gazelas de Mongólia, ursos pardos
antílopes e multidão de peixes.
O ar se empobrece à medida que subimos
freiam nosso avanço a ausência de veredas
os inóspitos glaciares e o gelo movediço.
Advertimos imprecisa a fronteira
entre a dura realidade e a suave fantasia
o limite delgado da história e a lenda.
Contam os pastores tibetanos
que um sólido terneiro de considerável alçada,
desceu lentamente dos céus ufanos;
e a água pura que de seu nariz brotava
-um arroio de caudal minúsculo-
deu ao Chang Jiang a corrente originaria
e os seis mil trezentos quilómetros de curso.
Descobrimos Janggaintirug: glaciar de congelada fantasia,
cume Gela Daingdong, pastor da lenda,
o manancial, a fonte que a corrente inicia
onde os deuses bebem sua velhice esplêndida
facilitando a seu rosto imarcescível a harmonia.
Montanhas, vales, altas planícies;
neves perpétuas e permanente gelo
sólida coluna, altivo Tibet,
lugar em que se assenta o firmamento,
morada perpétua da divindade
onde os rios tem seu começo.
Lhasa (Tibet)
A mar oceânea
Primeiro o ar, o vento, o espírito,
depois a água, o mar, a líquida planura;
em terra do Oceano, pescador de Alotau,
o homem foi papua.
Forte, destro, lúcido, magnânimo
alinhou-se em tribos inimigas
e vieram os comerciantes de escravos.
O mar trouxe o bom,
e também o mau.
Muralha, mar, és muralha;
és barreira e és ponte,
tua união consumada com a terra
tão adentro, tão profundo, tantas vezes
produziu o germe e a essência,
primeira raiz do vivente.
Escondes em tuas arcas maravilhas
todas as feituras e cores existentes
qualquer forma de vida.
Alaridos famintos de amizades,
insone de amores descumpridos,
em leito de facas tempestades
queixas de solidão no teu retiro
ondas altas, braços de gigante.
Estás sozinho, mar, abandonado,
te invadem comerciantes e guerreiros
a habitar-te o homem não se arrisca
ouro e prata naufragam em teu seio.
Sobre ti jamais galoparão potrinhos,
não verás abelhas polinizando flores
nem aves do paraíso adornando remoinhos.
Darias cem vezes a linha horizontal de teu horizonte
por banhar inclinações onde se põe o sol mortiço,
a metade dos ventos que te sopram
por curvar meandros como o rio
vendo florescer o inhame glauco
palmeirais de sagu,
a mandioca dos campos;
incluso a beleza da vela enchida
cheia do sopro que a empurra, porque os gamos
comessem erva das tuas pradarias ricas
ou por sentir os singelos cantos
das aves surpreendidas
palavras das mil línguas papuas a teu lado.
Prefiro-te indeciso,
mar;
titubeante, instável, movediço;
assim te precisam o vento,
a chuva, a terra e o inconsistente equilíbrio.
Alotau (Nova Guinea)
África
«Os Makondes
na Costa Índica terão sua morada,
para os Sukumas reservei o Victoria imenso
no Nordeste montanhoso se situarão os Sambas
os Nyamwezis ocuparão o Centro,
viverão os Mbugwes contíguos ao Maynara
e aos Chaggas corresponde o Uhuru recio».
«Compartilharão os peixes com a águia que pesca,
a caça com as vigilantes rapaces,
e com as girafas as folhas cimeiras
das elevadas árvores;
os pastos com gazelas, antílopes e zebras
a água com todas as espécies
e respeitando o que lhes rodeia
viverão em harmonia permanente».
«Culmina minha obra a regular cadencia
que ordena os ciclos do Sol e da Lua,
define da semeadura a época
e distribui os calores e as chuvas
propiciando o crescimento das ervas».
Aliado do búfalo, do leão e o elefante,
o pastor Massai da planície extensa,
amigo da frondosa árvore banto,
de zulus, árabes e persas,
leva a mensagem de Ngai pela savana
escutando os bramidos do amor e as respostas,
carniceiros e vítimas caladas.
Entre o búfalo e o gnu abrevam vacas,
cabras, ovelhas;
ao lado de crocodilos e hipopótamos,
junto a oryx, topis, javalis, macacos, impalas, hienas.
Mas o proceder malvado dos homens egoístas
ladrões da natureza inerme
destrói pouco a pouco a harmonia.
Fome, guerra, peste e seca,
como folhas de erva segam vidas
e por velhos fuzis e umas poucas moedas
compram as enormes riquezas dormidas.
Que te fizeram! África;
e que te fazem!
pois já não te ficam lágrimas
que já não te fica sangue.
Nairobi (Quênia)
Roma
Rómulo, confesso fratricida,
das aleatórias formas do voo dos pássaros escuros
recebe uma glória imerecida.
Transgressor de leis humanas e divinas
– especificamente, suas mais recentes normas-
sacrifica no altar cruento e em singular comida
aos bois que o termo da cidade acordam,
raptando a milhares de sabinas
para que vagabundos semeadores de ventres
gerem nelas uma plebe aderida,
se convertendo a sua morte em deus Quirino
adorado por romanos,
venerado por sabinos.
Percorro Roma, tão afamada,
e nas colinas salpicadas de gloriosos indícios
espanto com firmeza gatos de infrequente talha,
descendentes de leões e tigres dos Circos.
Vigiam relíquias, despojos, sedimentos
estátuas, panteões, obeliscos
obras públicas e fastuosos monumentos
erigidos ao ditado de insignes ditadores:
adustos pontífices,
montarazes imperadores.
Quando cruzo a arborizada Piazza da República
o céu se cobre de estorninhos escuros
que em seu voo agrupado compõem volúveis figuras:
sobre o azul três negros escudos
protegem sendas torres custodias
e três cavaleiros equipados de armadura
cavalgando potros de Anatólia
as defesas derrubam na altura
com o extremo endurecido de sua lança impetuosa.
A imaginação relaciona ao acaso os palcos
e ao ver as figuras chegar a desfiguras
sugere Lisboa um vinte e seis de abril, quando
um jovem mendigo,
ao pé dum rei de bronze a cavalo
qualquer lugar tranquilo
limpava suas unhas com dentado bisturi;
ou me translada a Genebra perto do lago
onde vivi cem dias esplendentes que se fizeram mil.
Centuriões e bispos,
os valorosos exércitos imperiais
acumulam um cansaço de séculos;
elevam a espada ou a cruz sobre proclamas
-conquistadores divinos-
e entram feros nos bairros
libertando as almas de milhares de corpos desnutridos
demasiado débeis para correr em retirada
exemplos forçados de heroísmo.
Depois de dois milénios de firme avanço cívico,
se sustenta o desenho de sempre:
decretam os patrícios,
os plebeus obedecem.
E de ter vencido Remo
não seria diferente.
Roma 23 dezembro 2009
Minha terra As propícias ondas celebradas sejam,
abertas ao talha-mar de roble,
e os ventos que inflamaram as velas
de baixéis egeus, mineiros do cobre
que até aqui vieram.
Nos sulcos abertos na terra parda
nas cinzentas ladeiras,
nos pedregosos páramos
e em arroios de férteis ribeiras,
se misturaram bem misturados
os iberos com os celtas.
Aqui gregos e fenícios,
aqui romanos em armas,
visigodos e árabes
se misturaram.
Aqui o sangue, aqui a medula,
aqui as células nervosas
e as chaves da herança,
explicam porque há tantas
e tão subtis diferenças.
Com meu apelido catalão,
de origem andaluz, sou castelhano;
e Castela não seria sem astures
galegos, leoneses, bascos,
sem os moçárabes do sul
que repovoaram o Douro devastado.
No fosso, pedra;
resistente adobe dos alicerces ao telhado,
e acima a argila cozida das telhas
presentes dos árabes expulsados.
Conquistadores, vieram pelo nosso,
ficaram um tempo,
e nos deixaram seu todo.
Balanço equilibrado,
de todos aprendemos,
a todos ensinamos.
América, América, América minha,
ouro e sangue
em troca da língua.
Língua ibera, antes grega e latina,
língua estendida que evolui e perdura,
«que boa língua herdamos dos conquistadores torvos»
verso escrito com as palavras castelhanas de Neruda.
1 março, Terra de Campos e O Cerrato, eu sempre neles
O saqueio da Grécia
Levanta o voo a rainha das aves
estende majestática suas asas
e consegue o céu a grande velocidade
alçando-me em suas garras.
Com a mirada abarco o esplendor heleno:
história, geografia, mito;
resumido nas sete colunas
do templo de Apolo em Corinto.
Memória das pedras por Mirón despidas
Praxíteles, o velho Policleto,
Fidias e Kresilas.
Liberdade de ação e pensamento,
democrática semente muito antiga.
Coexistência do terrenal com o celeste
Lebaida e monte Olimpo, Alfeo e Olimpia,
arroio Ismenos, colina de Cadmeia
libertando-me, o águia,
em Píndos, com suavidade, se assenta.
De pão terno é o aroma suave que desprende
Ioannina nua na hora do banho,
recostada e lânguida, os pés
nas sombreadas águas do lago,
disperso o cabelo,
apaixonando
aos ditosos que Ípiros caminham,
lhes mostrando a cidadela e os bordados
cúpulas das mesquitas, esbeltos minaretes
residências rodeadas de jardins
plátanos, ciprestes.
Esposa prisioneira no harém de Alí Bajá,
para libertá-la do tirano
dou meu braço jovem,
ao serviço da cruzada ponho meu espírito romântico.
A matança de Quios
cheia de indignação meu ânimo
a destruição de Missolonghi inflama de raiva meu peito,
lhes acompanho amigos na batalha
que impedirá a compra deste país ao varejo.
O disseminado mundo grego reage
recordando o esforço de Milcíades, Temístocles, Leónidas,
de Epaminondas e Trasíbulo,
em memória de Maratón e as Termópilas.
Com Byron na palavra e nos feitos, com Shelley avanço.
Ioannina libertada beija a bochecha minha,
vou com Müller da mão,
com Victor Hugo, Lamartine,
e repleto de entusiasmo
-oráculo em Dodona-
auguro perpetuidade ao povo renovado
que recebe apoios tais, tantos e tão convencidos
e à cultura que conta
com tantos e tais paladinos.
Ioannina (Grécia)
AMOR, PILAR DO UNIVERSO
Encontro
Eu era apenas uma ilha
e ela uma ilha era.
Ela ilha pronta a abrir-se
e eu ilha muito aberta.
Eu uma ilha agitada
e ela uma ilha inquieta.
Era Amor quem se acercava
com o carcás e as setas,
e logrou que nos amássemos
ao superar a primavera.
Valdepero,1962
A vida, amanhecendo
És Amor um potro selvagem, uma catarata
de queda profunda, um vespeiro,
um gatinho manso,
um arroio pequeno.
E tudo isso sucede
no mesmo momento.
São tuas carícias como pontes,
como infinitos caminhos;
são como espelhos,
como espelhos transparentes tuas ausências;
são como plumas,
como plumas etéreas teus silêncios;
são de chumbo candente tuas feridas,
cicatrizes curtidas do recordo.
Bem-estar lúcido e torpe,
jubiloso dor,
horizonte detrás do horizonte,
manancial de dita e aflição;
mágica palavra:
Amor.
Em minha noite te sonho azul e fogo,
amor de amor apaixonado
em minha noite te sonho,
diamante encastrado.
Valdepero, 1963
Tu, sempre tu
Joelho em terra te vi na fonte bebendo a água,
tigela impossível
das mãos cálidas;
te achei de novo sentada em corro com as vizinhas
quando absorta bordavas
o enxoval de noiva na entardecida;
voltei a encontrar-te na festa alegre da patroa
e dançamos sem repouso
até a alva rosa.
Um verão alto, coalhado de colheita,
a cesta da merenda trazias sob o braço
quando o sol agonizava na vereda.
Te pensei a nota musical remate do canto
o verso que faltava ao poema,
a pincelada valente que concluía o quadro.
Eu era o lavrador, o filósofo, o esteta,
o músico, o pintor, o vate inspirado,
e procurava sem trégua.
Trombetas, tambores, sinos;
da casa de pedra chegavas, mulher,
enchendo os meus vazios.
Palencia e Valdepero 1962
Tu, meu presente, meu futuro
Sobre as pegadas ténues de teus pés nus na praia
sobre a branca espuma
que borbulha a testa das ondas quando te banhas;
sobre a suave brisa e o dócil vento
que beijam a harmonia da tua cara;
sobre a eternidade de teu sonho
sobre o eco azul de tuas palavras
sobre nosso amor antigo e novo
quero edificar
firme o vindouro.
Península de Troia,1970
Adolescência
Naquele verão dos dezesseis anos
durante as festas da Virgem
entrávamos e entrávamos
ao
trem
da
bruxa
para beijarmos.
No final de agosto
nos faziam muita graça
a bruxa, o fantasma, o morto
e até a vida recém começada.
Palencia, 1962
Ela no meu caminho
Rapaz imberbe e espantadiço
perseguiam meus olhos sua face
um dia e outro dia à porta da casa
um lugar e outro às seis da tarde.
Olhou-me entre curioso e encrespado,
assim que sacando forças de fraqueza
abri meu coração apaixonado.
Um pedestal situei baixo seus pés
a converti em estátua grega ou romana
mas caiu sobre meu coração todo desdém.
Naveguei mares, atravessei desertos
estendi guerras contra inimigos ignotos
e cansado insistir sem resultado me retirei aos cerros
fixando minha residência numa gruta de raposos.
Comi raízes, bebi água encharcada
e vendo a grandiosidade do céu estrelado
achei a verdadeira calma;
de modo que o proceder calado
me deu a melhor fama.
Numa procissão de peregrinos,
tão formosa como a primeira amanhecida
sem me conhecer se acercou com os vizinhos.
Foi vê-la e recordar a antiga,
reconhecê-la e acordar uma tormenta de raios
e trovões que dormia.
Sua presença rompeu meu sossego
minha vontade sem força
voltando a mim o impulsivo desejo
a modo de centelha ardente e luminosa.
O eremita santo que era eu a seus olhos
foi aceito pela sua bondade
e ficou a meu lado numa gruta de lobos
prometendo a Deus silêncio e castidade.
Valladolid e Barcelona 1969
Entardecer na praia
A primeira gota de chuva foi um floco de neve
o frio teceu meu sonho gris na neblina
era um inverno ainda leve
estava eu só e tremia.
Me tem a noite encurralado
fortemente atado e não me solta;
me tem cercado,
entre as cordas,
sitiado pela memória dos fatos
jasmim, pedra e cobra.
Quando brotam de teus tristes olhos
as abundantes lágrimas
dos frequentes choros,
já são todas leis e máximas
torrente, rio, arroio
Não posso improvisar uma barreira própria
dias de ira
vão a meu coração tortuosas
sombras líquidas
e o afogam.
Minha fêmea amada muito compreensiva
doce, relevante, apaixonada,
teu futuro: fecunda idade e pessoa ativa:
dolorido sentirei no monte Abantos
em meu espelho refletido
aurícula e lábios
último destino.
Qualquer ferro, qualquer fogo
qualquer calcada profunda de cavalo
em qualquer deserto de qualquer globo
no último inferno condenado
serão por mim, em teu lugar, sofridos
altos ciprestes afiados
sem suspiros.
Palma de Mallorca, 1983
Amar, amar, amar
Amar para viver ativo,
considerando o amor fonte de vida;
ou viver para amar, sendo o amor o objetivo;
eu não acertava a resolver a disjuntiva.
Ante essa dúvida do todo irresolúvel,
perdendo um tempo do que não andava sobrado,
em tão enredosa encruzilhada me detive.
A minha idade provecta
no horizonte unem-se Tânatos e Eros,
opostos só em aparência.
A apetecível e dificultosa vida,
o desconcertante e prodigioso amor
e a morte tão difamada e tão temida;
formam os três lados do triângulo existencial,
os três ângulos, as três bissetrizes
aos que o homem costuma a se aferrar.
O estímulo foi antes que a nada primigênia,
na intrigante e aleatória formação da Natureza.
O estímulo vácuo;
e todo o demais, depois:
as rochas e as árvores, as palavras e os fatos.
E aí, nessa nossa terra
copiosamente abonada da excitação,
minha fêmea humana de formosura plena,
destaca teu erotismo em inteira floração.
Aí brilhas, minha marinheira intrépida,
resplandeces aí, minha fêmea impudica,
no estímulo flamejas,
minha adorada mulher madura.
Tua paixão agita o almanaque,
põe nos dias em fila e os faz correr a teu ritmo,
estimula minha miragem,
e acelera os processos evolutivos.
Comove hormonas e sentimentos,
até o ponto de ruptura força à vontade
e desenha, ajustada à intensidade dos desejos,
uma nova escala para medir a felicidade.
Somas essas habilidosas práticas, já fortalecidas,
às faculdades cedidas pela natureza:
a sinceridade, a fortaleza, a fantasia
o desejo de superação, a inteligência,
a capacidade de luta, e a facilidade criativa.
És a brisa no deserto,
o orvalho no deserto,
a água no deserto,
o palmeiral no deserto.
És o oásis estendido no deserto,
e o deserto convertido
num enorme oásis aberto.
Semeiam minhas palavras teus ouvidos,
fêmea ativa e pressurosa, minha amada intemporal,
crepúsculos cálidos ou frios.
Essenciais e íntimos momentos
em que a luz do farol a estância ilumina
e o relógio do campanário rompe o silêncio
para dar as doze da noite a médio dia.
Oh! minha provisora de tâmaras e leite de camela,
de sombra fresca e água cristalina;
oh! minha poetisa aberta,
minha doce flautista,
sem ti, que triste seria a Terra,
que feia a vida.
Barcelona e Palma de Mallorca 2010
Naufrágio
Distanciada dos alcantilados espumantes
minha barca navegava na bonança;
eu içava as redes enchidas
e ao leme ia a amada.
Escureceu o dia de improviso:
nuvens de colérica negrura
o céu azul foram cobrindo.
E com a força dum milhar de terramotos
arrojaram à amura de bombordo
um empurrão ciclópico:
água, violência, fulgor, negrura: isso era todo.
Opostos os deuses a minha felicidade terrena
descarregaram estocadas de gigante,
na sacudida fatal duma tormenta.
Aceitou a realidade minha reflexiva testa
desmedidos embates, marteladas furibundas,
inúmeras torturas resistiu espantada a consciência.
Na superfície tremeram as ondas mais profundas
forças desgarradas da contraditória natureza,
e o mar foi dor, confusão e íntegra loucura,
espasmos colossais de aflição extrema.
Como pluma se alçava minha chalupa obrigada pelo vento
forçada a percorrer o espaço num instante,
a subir ao zênite e descer até o nadir num momento.
Enfrentaram-se na vertical da rompente
madeira contra pedra em desigual batalha,
proa e popa alternaram sua investida
convertida em brinquedo a chalana.
Não teve debilidade nem imperícia,
resisti quanto as energias resistiram
enquanto a mão feminina prolongou minha mão,
até que a vida da amada foi arrancada da vida
e me transformei nos restos do naufrágio.
Aonde irei com minha íntima ternura
aonde com as palavras doces e todas as caricias
que encontravam em minha amada sua fortuna?
Que verões alimentarão de esperança
o resto dos invernos da vida?
Onde acharei sossego, onde refúgio
quando os muros de minha casa
e o manhã sonhado têm sucumbido?
Acurralado pelo desconsolo que a solidão me lavra
procuro a minha amada no pedregal da rompente,
na disgregada intimidade das escarpas.
A procuro no centro do furacão furioso
no fervente coração da tormenta, no golpe de mar
que a arrancou de meus braços e meus olhos.
Subido ao infranqueável paredão da tragédia
surdos os ouvidos,
exânime, exangue, a mirada cega,
o entendimento perturbado
extraviado o Norte que marcava a rota do destino,
lanço ao céu o sangue fluente da ferida e abraço
à amada na profundeza anil do precipício.
Cornwall, 1985
Límpida confusão
Ouço o relincho desse cálido sopro
que do Norte vem e no Olimpo dos deuses
o disperso Éolo chamou Noto.
És tu,
inicial
preliminar,
quem chega diáfana e rosada,
rapariga estremecendo
a inexperiência humana,
alazão o vento,
cavalgando rápida.
Já estás aí:
em teu dia recém amanhecido,
primavera das ânsias
com expectação sem perímetros,
empurrando a porta que desde o jardim abre a casa.
Vens para ser nuclear ferramenta,
substância fertilíssima,
fonte, arroio, rio da nossa existência.
Vislumbre sou no espelho de tuas dúvidas,
obelisco de névoa na intercepção de caminhos;
quebrantadas promessas
e desvinculados compromissos.
Só, sem ti,
na obscuridade de tua ausência prolongada,
vazio desse brio promissor das sequelas positivas,
sou incapaz de ser mais nada
do que sou na realidade submetida.
Sem ti sou
quem não quero ser
e, às vezes,
nem isso sequer.
Somente em ti: espaço, tempo,
ideias, propósitos,
vontade e atrevimento;
ser humano tu, fêmea de lábios nutrícios,
peitos vaidosos
e cabelos em cascata
caindo sobre os ombros;
só em ti sou eu,
o eu herdeiro de meus antecessores sucessivos,
sentimentos tão puros como a alvorada
do dia inaugural deste mundo fictício.
Cresce em ti minha consciência de existir,
de ser, de poder,
de ir e permanecer
desde o levante padre do sol, para esse ocidente
que orienta mi maneira de viver.
Tua complexa simplicidade, tua diversidade ingénua
definem em mim, complementárias,
essência e existência,
as individualizam de modo divergente
livrando-as de isolamento
e dos erguidos rompimentos consequentes.
Voo nos lombos da tua esperança confiada,
vou a ti, incólume, vencendo a gravitação universal
que nos atrai e nos separa,
espaço-tempo curvando-se até um todo aberto,
na infinita eternidade
do quase infinito cosmos inquieto.
Unicamente sou eu
detrás do amoroso sorriso teu compreensivo
das minhas insuficiências e outras demasias,
verdadeiro desequilíbrio
que somente tu estabilizas.
No teu interior, na fundura,
na profundidade de teus convencimentos
encontro fundamento firme
e sou
quem eu quero ser
pelo diário esforço
de elevar-me e elevar-me
desde o solo.
Salvador de Bahia 2015
APONTAMENTOS
A perfeita unidade dos cinco elementos.
Ar, água, terra, fogo e tempo,
tão admirável como eras,
te tinham ido fazendo.
Primavera do ano sessenta e oito
albergue juvenil da rua Ville-l’Évêque, Paris
como tempo e espaço do encontro.
Nascida em Salvador de Bahia, cidade fortunada,
mulata de todas as culturas
a humana mais humana
que um jovem pode amar.
Em teu colo, que algum deus grego
perfilou a imitação de Fídias,
entre teus cabelos, finíssima cascata, selva,
minha boca incrédula
encontrou a imaginada placidez efêmera.
Arrependo-me ainda de não te compreender
mais que a fragmentos e às vezes,
às vezes e a fragmentos,
parcialidade insuficiente
delatora de minha falta de compromisso eterno.
Penetrava, no recinto sagrado de teus olhos,
a intensidade da mirada minha,
e percebia o lume, surgido inexorável
com a intenção de incendiar meu caderno
de impuros pensamentos,
liberadora de ondas invisíveis,
rosa dos ventos.
Uma noite dos dias aqueles,
à hora crucial da madrugada
-inverno retirado a seus quartéis-
inauguramos a nova primavera,
poética, florescida e luminosa,
original impacto da Natureza,
estabelecendo pressurosa
a Ordem no interior do Caos.
Saíam chispas, lembras?
do choque das placas tectónicas,
rios de lava, pão vulcânico, labaredas,
poemas abertos de Neruda,
refúgio convertido em biblioteca.
Força e sensibilidade o chileno
poeta a base de leituras e vivências,
nas palavras que me iam fazendo,
leitor e escritor, suas escrituras concretas.
Saboreávamos um poema dos Vinte de Amor
e arrancávamos a página onde habitava,
sentados os dois em almofadas
que abrandavam a firme dureza do chão.
O recordo, como não o lembrar!
se ao atingir a Canção Desesperada
nos abraçamos tomando o plano horizontal
primeira hora da madrugada,
leito de folhas que exigiam sua liberdade
aos ramos em todas as florestas irmanadas.
Te amaram
as frutas tropicais em seu ponto de madureza,
as verduras da tua horta, as águas impetuosas
dos arroios.
Os símios que jogam a ser humanos
nas copas elevadas das árvores mais altas,
e os pássaros canoros de plumagens amarelas
te amaram.
Inverno y verão, outono e primavera,
e a Natureza inteira te amaram.
Carbono intenso do diamante,
esmeraldas
de verde vegetal, as nuvens, o vento,
meus braços, meu peito e meu amor
te amaram.
Bebemos, sedentos e famintos,
o cálice até as fezes,
recebendo com deleite
a gota última.
Sangue derramado de minha ferida
no sacrifício cruento, sacerdotisa tu,
e eu propiciatória vítima.
Página a página te via,
meu amor,
esfolhar o livro da vida
em teu sorriso aberto
sobre a perfeição de teus dentes
lábios carnais, essenciais,
devorando os descompassados
interlúdios
do tempo soberano.
Sim, é certo,
o tempo, imprescindível cúmplice,
esperou o termo da íntima conjunção
para prosseguir seu caminho
segundos, minutos, anos, séculos, que nosso
encontro tinha conseguido manter cativos.
París 1968, El Escorial 2017
. A vitória do desejo
Quarta Graça de Rubens,
caminhava Leda, primavera adiante,
mostrando sua beleza íntima
entre as dobras diáfanas
do tecido intangível que vestia,
Rainha recém desposada.
A floresta alumiada alumiava o dia,
a Mata Atlântica, a lagoa, o remanso do rio,
o rumor da cachoeira e os cisnes,
Branco e Negro, hostis amigos
que ali, plumagem impermeável,
aguçavam seu instinto.
Livrou-se Leda da insubstancial vestidura
para preservar a mística,
ficando quase tão nua
como se estivera vestida.
Leda apaixonou aos cisnes, já inimigos,
dos que se apaixonava
com um propósito bem definido.
Oh, suas plumas resplandecentes, flamantes.
Oh, seu pescoço de curva interrogante,
Oh, seu jeito elegante.
E os cisnes pescoço a pescoço lutaram,
bico aberto contra ferrado bico
com todo o desejo da força sua,
com a força toda do desejo recém surgido.
Cabelos, rosto, ombros, dorso, braços, peitos,
Leda, humana na posição de diosa,
nácar de mil caracolas a epiderme rosada,
pança, nádegas, coxas e a misteriosa
conjunção copulativa que acordava
do longo sonho de castidade imposta,
ao esposo ausente reservada.
Branco e Negro lutaram pela conquista
da escultura viva de mulher cheia de encanto,
grasnidos, bicadas, asas agressivas
e fortes puxões dos pescoços enlaçados.
Os dois Cisnes, machos amigos nesses dias,
senhores da formosura animal,
das harmoniosas linhas,
se inimizaram pelo reprodutor afã
que pôs Natureza em sua paixão mais íntima.
Venceu Cisne Negro,
e Branco fugiu, fugiu, fugiu a toda pressa,
bicando seu orgulho enrugado
as asas desgalhadas, as desfolhadas penas,
com o pescoço desplumado
e a perfeição sem essência.
Leda, testemunha da violenta briga,
vivia os momentos com agitação virginal,
a volúpia, tanto tempo reprimida,
ia desatando suas ataduras,
dendrites despregando sensibilidade supina,
umedecendo o tecido interno
com um mel tão líquido
como a água que recebia o excesso.
Foi ali, na lagoa das mil delícias,
onde o cisne triunfador,
brilhantes as penas pretas, esclarecidas
com sua própria luz até atingir a imaculada,
se acercou à mulher de simetria perfeita,
figura de suave e firme pele nacarada.
Esperava-o Leda ansiosa e tímida,
assinalando, mais que cobrindo,
com as mãos, sua intimidade inibida,
trémula, vacilante: altos peitos,
coxas duras na fusão esponjada,
ressumando dulcífluos desejos.
Não era humano Cisne Negro, porque era
o Pai Zeus, deus de deuses,
encarnado em cisne para gozar de Leda
apropriando-se da delicada pele incólume
dos peitos altivos, altos,
da sua virgindade anelante
do anseio e o prazer intactos,
desbordados, transbordantes.
Da cópula no instante supremo
enérgico e doce se ouviu o Hino profano
que Eros titulou: A vitória do Desejo,
composto por Handel, Afrodita,
Apolo e Himeneu,
para a memorável ocasião tão exclusiva.
Essa longa e esplêndida sinfonia de ritmo
volúvel e instável após os silêncios cautos,
que parecia ressuscitar com vigor crescido
teve o efeito de acordar em mim a autocensura
evitando a complexa descrição do encontro intrínseco.
Inconveniente considerado mínimo
pois a imaginação de pintores e poetas
o debuxou em todas suas críveis formas e maneiras
durante os longos séculos decorridos.
Vitória ES Brasil 2015
O Mito da amada
Ser homem, mulher,
jardim em sombras tu, Utopia;
ser homem, mulher é te encontrar
entre as cem mulheres com que me cruzo a cada dia;
e saber que és tu,
ponto por ponto e sem a desconfiança mínima,
aquela dos sonhos imprecisos
das minhas noites mágicas e míticas.
Ser homem,
mulher, intensa penumbra tu,
exceção das regras conhecidas;
ser homem, mulher, é explorar-te,
extensão que teus limites amplia,
até atingir o confim insuperável
e ver que ali arranca o mistério e não termina;
pois essa mirada tua,
tão penetrante e sensitiva
debilita com a leveza de sua música
a fortaleza e a energia.
Ser homem, mulher, renovada esperança tu
duma inocência antiga;
ser homem, mulher, é conhecer-te,
e saber que possuis a chave da vida;
é atingir a eternidade num instante
ao receber de teus lábios a ambrosia.
Ser homem, mulher, raiz pujante tu,
de profundeza infinita;
ser homem, mulher, é precisar-te
e desejar voltar a ver-te, tácita e ubíqua,
ao outro lado do Oceano, na loja de livros velhos
ou ao dobrar qualquer esquina.
Ser homem,
mulher,
terra de promissão tu,
chuva propícia;
ser homem,
mulher, é comprovar
que o mito da mulher amada,
essa realidade tão singela e tão diversa,
na convivência renovada
se debuxa e coloreia.
Madrid 1971
Ode à mulher madura
Exórdio
Um bom dia cheguei a tua casa
minha amiga,
e tua casa era o campo
e teu campo tinha o horizonte posto
na Natureza toda:
terra fértil de cor avermelhada,
ervas, enredadeiras, arbustos de fruto comestível,
árvores reunidas em vegetal conversa
retas, eretas,
se elevando como frechas dirigidas ao infinito
desejosas de atingir um céu protetor
azul e cinzento que chovera água tíbia
sobre todas as terras, sobre todas as plantas.
E sobre os animais
teus irmãos do bosque:
símios inocentes, cobras ondeantes
e pássaros cantores de cores diversas,
vivas, belíssimas,
filhos da música e o vento,
da pintada Aurora.
Espaço de liberdade que queres
sustentável e protegido, aberto ao viajante
que sossego procure.
Tendida entre dois varais do alpendre
havia uma rede ampla
onde cabiam dois corpos abraçados
que se mexeram unidos nas ondas
desse teu oceano cruzado de conquistadores
embutidos em resistentes armaduras
sobre cavalos desorientados.
Na ombreira da casa
de tua ideia convertida em campo
portas de par em par abertas
janelas abertas de par em par
estava o colaborador imprescindível,
o tempo ativo,
partícipe necessário
do pensamento e da ação
da paixão e da cordura.
Me entregaste tua poesia
em dois cadernos manuscritos
filhos verdadeiros, irmãos
de tuas pinturas e debuxos:
artista completa, toda tu criadora,
inteira e verdadeira,
íntegra.
Eu levava na cabeça meu poema à fêmea madura
versos sensuais que ainda não tinham destino de mulher,
abstratos como a alvorada do instante primeiro
névoa cósmica
inundada de luz primigênia.
E vendo-te ali, elevada em pedestal de deusa,
erguida silhueta circundada de luz,
luz escultora delineando teu perfil
teu corpo poderoso junto a tua casa aberta,
soube que eras tu a mulher madura, o poema era teu,
e a ti te tinha sido escrito.
O poema
Minha desejada mulher madura
fêmea plena e florescente
de carne frugal e entendimento reflexivo
és a deusa Hera, esposa do grande Zeus;
e de teus peitos, ubre generosa,
brota a diário em espiral a Via Láctea,
galáxia formada por duzentos mil milhões
de planetas travessos.
Filho do pai dos deuses e da humana Alcmena,
eu sou Héracles,
o herói que procura em teus peitos
a imortalidade vedada.
És Penélope, mulher;
eu sou o novo Ulisses, e regresso a Ítaca
cansado de guerras e aventuras enganosas.
Tudo é hostil,
muros de intriga cercam a casa,
os inimigos têm tomado posse do meu,
mas tua agredida fortaleza ainda resiste.
Teus peitos me reconhecem,
esposa fidelíssima;
identificam meu rosto, minhas mãos e minha voz;
teus peitos,
só eles,
sabem quem é este mendigo estrangeiro
antes de me ver entesar o arco e passar
a seta através dos doze olhos de machado.
Crê-os!
teus peitos
mulher madura
conhecem a verdade,
sabem que meu coração os quer esféricos e vaidosos,
minha tímida gazela, minha flor do Paraíso,
sabem que meu coração os ama impávidos e exaltados.
És Helena, mulher, a espartana Helena;
tua perturbadora beleza seduze a deuses e a mortais;
eu sou teu esposo Menelao, rei consorte,
e se perdoo teu veleidosa conduta,
deves saber que à memória
de teus formosos peitos obedeço.
Mulher nascida da terra fértil e as fragorosas ondas,
teus peitos são o portentoso acerto da Natureza prática,
um mistério que os sete sábios
de Atenas não poderiam interpretar,
um presente de Míron, um obsequio de Fídias.
uma doação de Policleto.
És Esther, a valorosa hebreia,
minha alígera corça, doce apaixonada,
minha senhora e rainha,
eu sou Asuero, o Rei,
cento vinte e sete províncias se inclinam ante mim,
as donzelas mais cobiçadas povoam meu harém
mas, unicamente, teus peitos
estimulante
vivificadora companheira,
enchem de festa a vida.
Minha adorada mulher madura,
minha virginal donzela,
minha desejada
fêmea sensual e prazenteira;
teus peitos invitam-me, me convidam:
desde sua posição de privilégio me convocam
em banquete carnal imoderado.
Possuem uma titilação iridescente quando os busco,
noturnidade marinha da areia fresca
túrgidos e altos na sua entrega pudorosa,
pálidos à luz da lua túrbida
perturbados pelos luzeiros esplendentes.
Fêmea total, minha animosa mulher,
marinheira de imaginárias singraduras,
teus formosos e erguidos peitos,
sólidos, firmes, resistentes, obstinados;
são o mascarão de proa e a proa intrépida
de teu corpo navegante.
Teus peitos, mulher, sabem a tâmaras
a papaia sucosa, a palmitos de sagu
a mango maduro, a amêndoa e a maçã;
teus peitos rotundos, meu inteligente e intuitiva
companheira,
sabem a glória.
São de absenta de noventa graus teus peitos,
de mandrágora e beladona,
fêmea soberana,
estrela polar de minha existência,
alucinógenos são,
certamente aditivos
e os bebo para suavizar por dentro
antigas cicatrizes ainda em carne viva.
A jacinto cheiram teus peitos,
pulquérrima mulher,
a laurel, a estoraque, a mirto
a eucalipto, a sálvia
a madressilva e a magnólia;
aos aromas bravios da flora silvestre
e à substância fecunda do inquieto mar salobre.
Os peitos da mulher madura são tersos e sensuais;
de dia cobrem sua timidez nua
de noite despem sua temerária ousadia.
Na penumbra se fazem fortes
alardeiam, me desafiam, me provocam
e os pezões se inflamam
pronunciando meu nome inominado.
Nada me atrai tanto como os esféricos, alçados
orgulhosos peitos da mulher madura,
lei da gravitação universal hostil e aliada.
Brilhantes estrelas que me fazem piscadas nas noites
escuras, quando o céu é transparente
e a vista cruza as enormes distâncias.
Sou um precavido a prova de razões,
e tudo o fundamento nos peitos da mulher madura
única realidade visível e palpável.
Deuses do Olimpo e Monte Olimpo eles mesmos
a seu cume subo para libar
minha diária ração de ambrosia.
Admirável mulher, compendio de mulheres
baixo teus cálidos e harmônicos peitos
minha experimentada sagacidade descobre
um coração amante que aprecia o arrojo e a ternura;
uma vontade de entrega –filha, mãe e esposa-
levada a se esforçar pelos seus;
a grandeza de ânimo da mulher emancipada
oposta às diretoras bridas;
e o empenho social orientado à conquista
do direito a se expressar e atuar livremente
um dia, e outro e outro dia.
Salvador de Bahia 2015
DESCOBRIMENTO
Lavrar Profundo
A ti Alonso, filho de Madri ou de Bermeo
Ercilla e Zúñiga, ou de Valladolid talvez,
mas de Ibéria de certo;
quero te sinalar nestas letras,
graças a Fortuna, breves,
meu assombro ante a separação que fazes
das noites vizinhas dos dias,
quando escreves em plena madrugada
«numa parte oculta e encoberta
tenho perto daqui minha gente armada»
uma tropa, sem dúvida, equipada e aguerrida,
disposta para o ataque na alvorada;
confessando Alonso ao papel secretos militares
que soldado és e escritor
a partes desiguais;
e não sei, o dou por ignorado,
se atuas para contar
ou contas para fazer o já contado.
Escritor eu que descreve o ocorrido
acrescentando o matiz, não depreciável,
do próprio sentimento,
dando por certos de igual modo
desejos e realidades;
te direi que admiro o uso simultâneo
da pluma e da espada
brandindo a cada uma numa mão
ora a ação tangível e arriscada,
ora, prévio, o intrépido relato.
Lavrar profundo
para que a terra se areje e se oxigene,
e depois semear no devido tempo
esse grão cereal, umedecido
durante uma semana em Valdepero
com água do poço e pedra-lipes,
eliminado assim doenças passadas e futuras
da semente repleta de esperança,
e que enche sua prenhez mais frutuosa
variedade antiga de grão
-coincido com Neruda em chamá-lo palavra-
pois já estava no princípio
do universo
adejando, adejando, adejando,
em vigorosa solidão, em abandono ativo.
E hoje, embora
temos convertido a palavra em sangue,
e a vamos transformando em luz,
sangue a intervalos a cada dia mais longos
luz em espaços a cada hora mais breves,
devemos recordar, no momento todo,
que sua capacidade
-palavra lenitivo, palavra espada-
segue sendo enorme, enorme, enorme;
enorme e reduzida.
Quando, a porta europeia
em outro tempo
de par em par aberta,
amanhece hermeticamente fechada,
os necessitados do inteiro mundo,
expulsados pela fome e as guerras
de seu solo,
têm que assaltar as barreiras
de água, arame e fogo.
Nesta Europa da feroz economia,
os cinco elementos naturais
-incluo ao tempo neles-
espaço, tempo, tradição e geografia
se vão convertendo em bens comerciais,
a história se reescreve,
desenhando uma nova cartografia do futuro:
esse amanhã comum
diferente para cada um.
Relega Espanha a Ercilla
Madri o trata como a desconhecido
e aqui reivindico seu nome e sua vida
sua vida e sua obra literária;
pois, se rejeito
o emprego sanhudo da espada,
admiro o uso
magistral da palavra.
Morreste Alonso e não sabes
por Fortuna
o que teu cadáver foi e veio
de aqui para lá inteiro ou separado;
ignoras que foste enterrado,
desenterrado e novamente enterrado
semeado de novo, novamente;
ignoras que decapitado foste, e tua cabeça
viveu aventuras
que teu coração ignora e vice-versa
por Fortuna.
Madri, março de 2016
Rapariga de Sacramento
Ignoro a maior parte das tuas coisas
quase todas as razões, mas sê
que numa palhota
descalça amanheceste.
Gritos de parto e vozes de vizinhas
saíam pelo negro buraco
do cano enegrecido
negro
com a fumaça do fogo que fervia
as raízes e esse suco
feito para alimentar tua ousadia.
Choraste ao fim, amanhecia,
choraste o primeiro de teus prantos
eras menina
e iam te chamar
Bitita.
Depois te pensei menina
e eras menina sem armário nem roupinha
sem enxoval azul ou rosa
sem sapatinhos de fivela linda
sem futuro de manhã pela tarde
nem do outro dia.
Menina sem amparo nem caricias,
entretinhas teu tempo
com brinquedos que fazias
de nada e ao momento
a teu capricho e medida.
Sobre o planeta Terra
ia descalça tua puerícia
se alimentando de raízes
de frutos e de flores
das folhas da rama
de suco de intenções.
Independência, orgulho, coragem
paciência e impaciência:
degrau a degrau tua Torre de Babel
se alçava na sucessão dos dias
com teu desejo de atingir as estrelas
dar um nome a cada uma
e viver sempre nelas.
Aprendeste a ler, a escrever
e procurando entre sucata e papelões
aprendeste a distinguir
e te foste fazendo de música e cores
de pranto interno
e esperança
mulher que pensava e via
ao passo que sentia, elucubrava e escrevia,
e eram relatos de vida e abandono
de receio e fugida
de alento e fogo
os que desses olhos saíam,
dessa mente produtora de ideias
dessa mirada profunda posta nas coisas
com um temor sincero
às pessoas escuras que escondiam
suas negras intenções num buraco preto.
Te emparelhaste com o macho
quando o alarme e o desejo empurravam,
te nascendo três filhos
que tiveram a sorte propícia
de ter no barraco
uma mãe generosa e decidida.
Formiga
sozinha
levavas
o grão
de alimento
ao imediato
formigueiro
todo o ano
inverno
inverno.
Esta noite te imaginei, e sendo negra
do tudo, toda negra,
te pensei mestiça do sol e da lua
com o melhor de cada raça
indígena, africana e europeia
ninada pelo vento e pela chuva
das quatro estações
que são só uma nessa terra equinocial
efervescente de luz e religiões.
Humanidade tu
encolhida em cócoras à espera,
saiu teu livro desse Quarto de Despejo
voou alto e longe, pomba mensageira,
choveu o dinheiro em diluvio universal
e recebeste na partilha uma parte pequena.
Chegaste ao alto da Torre
quando teus escritos iam inundando o Planeta
rapariga de sacramento
mulher de favela.
Ao receber sua visita o soubeste:
Fortuna fica pouco tempo na casa do pobre.
A Torre se fez mais Babel ainda
as diferentes línguas foram imiscíveis
e se confundiram te confundindo.
Envelheceste até sentir o mau
recordando aquelas vizinhas que fugiam
e as que precisavam, para se sentir bem,
escutar os versos que escrevias.
Uma noite escura te sonhaste morta
no interior fechado do caixão,
nas mãos, livros em vez de flores;
foi um sonho de graves consequências
porque já não despertaram as vidas
que neste mundo rompido, viveste
à maneira que foi tua maneira.
El Escorial, 20 de mayo de 2017
A realidade imaginada
Desde a boca do poço
olhando para o interior sereno
vejo passar as cinzentas nuvens
descobrindo
e tampando o céu estrelado,
reflexo da água que dorme
abaixo
e sonha sem esperar milagres.
Abrindo portas, rompendo moldes
furando céus noturnos
fora de hora chego.
Estou feito de umbreiras e janelas
caleidoscópio inquieto, surpreendente,
olhos que têm visto o infinito,
mãos que empunham o raio
no furor da tormenta
para domestica-o.
Nadei no primeiro banho
nada mais nascer da minha mãe
quando deletreava a palavra vaga-lume
lida num conto ilustrado
que alguém
pensava me presentear a véspera
de meu vigésimo quinto aniversário.
Tudo em mim é insólito
tudo em mim preexiste,
a rosa dos ventos assinala os túmulos
dos meus antepassados vindouros
fertilizantes durante séculos e séculos
dum campo de papoulas,
olhos serenos de quem tece urdiduras
e tramas improváveis
destinadas a reinventar o mundo
mudando de lugar
as portas de entrada e saída
nascimento e morte
emergindo das profundidades abissais
para atingir eléctrones y planetas capazes
de acondicionar a vida
e crescê-la até limites insuspeitados.
Sou o homem, a pessoa
o ser humano do século vinte e um:
macho e fêmea destinados a encaixar
entrantes e salientes
desejos e possibilidades,
imaginação desbordada que ascende
acrescentando escadas
sobre as escadas.
Em ocasiões, você o sabe
Carmen, seus poemas, sinos ondeantes
como trigos recém granados
golpeiam
badalo e bronze
a solidão de algumas tardes
quietas na primavera.
Em momentos contados
a sincronia imprescindível salta dos balcões
à rua;
e desde o fundo da rua inclinada
atinge os balcões
semeados de gerânios a ponto de estoirar
em forma de circunlóquios purpúreos.
As duas vezes que nos aproximou o destino
C triplicada de Carmen Conde, nascida em Cartagena,
sucedeu o impossível;
a primeira foi na Cuesta de Moyano em Madri
e tu ias com Antonio
esquadrinhando, esquadrinhando, esquadrinhando.
Nossos olhos se pararam sobre os mesmos
livros, dois concretamente:
Eternidades, editorial Renacimiento
Madrid, Barcelona, Buenos Aires;
e Azul, Valparaíso, 1888.
Te deixei a dianteira e Antonio
os comprou
sorrindo-te.
A segunda ocorreu um ano depois,
ou dois,
na Casita del Príncipe,
ali onde se encontraram Picasso e Neruda,
El Escorial,
lugar que visito ainda sem fazer ruído
para não espantar as lembranças.
Íeis, Antonio e tu, com Juan Ramón
e com Darío:
quiçá não eram, mas a mim me pareceram eles,
aqueles dois amigos.
Olháveis as paredes e o teto
quando eu os olhava:
o monte Abantos, os castanheiros desprendendo
um fruto protegido. Falamos,
imaginei, os cinco, das palavras esdrúxulas
dos signos de admiração;
em assuntos de amor um põe a cesta
e o outro põe as flores: assim foi,
es e será
por muito que os tempos mudem:
ouvi que dizíamos,
embora dizia mais
Darío. Todo isso ornado
de finíssimas gotas de orvalho a ponto
de empreender o voo, evaporadas.
Mas na verdade, por entabular conversa,
perguntei a você, só a você,
onde estava o famoso Monastério.
Respondeu a tua gentileza sorrindo:
esse edifício tão grande,
de pedra todo inteiro,
o que tem tantas janelas, e guarda parte
da história da Espanha dentro de seus muros:
Palácio, Panteão e Biblioteca:
esse é, pode estar seguro,
não tem perda.
Só por ver, Carmen, tu ingênuo sorriso,
e passado o tempo poder relembrá-lo
com todo seu luminoso feitiço,
valeu a pena passar por ignaro
no lugar onde habito.
Madri e Cartagena, 1999
O passado renascido
Convertidos os símbolos da antiga ordem
em recipientes frágeis para guardar o novo,
saqueadas as tumbas dormitório do homem,
e cegado o poço que regava o horto,
o claro manancial onde bebiam os nobres
a água tão pura e silenciosa, seco:
cauteloso rumor, espiga e pedra,
as intermináveis horas avançam a destempo,
permitindo aos reflexivos profetas
entender o futuro como anzol autêntico.
Depois de tantos dissabores suportados em seu nome,
de superar dúvidas razoáveis e múltiplos prejuízos,
a natureza do futuro se conhece.
É outro mais dos antigos mitos,
cuidado como embrião no ventre de gestante,
que põem de atualidade os convencidos,
para que as pessoas olhem para adiante.
Entre o ontem falecido e o amanhã frouxo
se libra atroz combate,
ambos desconfiam do entorno, de nada estão seguros,
não se fiam do presente nem um ápice,
intuem que qualquer sucesso absurdo,
pode variar o seu avanço invariável.
Se tudo fosse cortado aqui ipso facto,
se o Universo em expansão der a volta por inteiro,
se ao chegar às taipas dos últimos estábulos
o vento permanecera quieto,
o que foi e o que será seguiriam confinados
junto às ideias submetidas ao silêncio.
Mas nos move a vontade inquebrantável
de arrastar a bagagem do passado,
milímetro a milímetro, planície ou vale,
pelos trilhos que o presente tem colocado.
Europa, 16 agosto 2023
DIVERGÊNCIAS
Barbárie
Ontem,
tão só ontem,
realidade iniludível
-chove hoje sobre Madri, doze de março-
o terror escolheu trens repletos
de operários e estudantes,
para exibir seu monstruoso gesto mascarado.
Esperaram ocultos os sicários aos mais madrugadores,
os forçados a viver longe do lugar de seu trabalho,
e quando os tiveram juntos, compressos;
quando a densidade de população
chegou a seu limite mais alto,
se servindo dos últimos avanços da técnica,
provocaram violentas explosões,
estrondos, clarões, labaredas.
Na catastrófica
encenação do último desastre,
os esbirros do terror atacaram à sociedade mais débil,
estoirando bombas repletas de fanatismo e barbárie.
Perseguiam o número,
a turbamulta, o enxame,
o humano formigueiro;
caixa ressoante de sua falsa razão inconfessável.
Num instante o caos confundiu as mentes
os corpos foram alfineteiras furadas de metralha,
lavaram o solo litros e litros de sangue efervescente;
calhas retorcidas e chapas seccionadas
arrancaram dos crâneos a essência inteligente;
e uma fenda de gritos
fugiu pelas gargantas abertas nos ventres.
Incapaz a pedra, incapaz a árvore,
incapazes o lobo e a serpente,
o tubarão e o leopardo;
foram infra homes fragmentários, residuais ou quocientes,
os únicos capazes de conceber tais estragos.
Em nome de que ofensa inexcusável
prepararam os potentes explosivos,
em nome de que deus ou de que pátria colocaram os cabos,
sabendo que a essa hora e nesse concreto espaço
não iam encontrar culpados.
Sem embargo,
além da morte conseguida,
fracassaram;
além de comportamento tão abstruso e tão covarde,
mostraram-se incapazes de impedir que o corpo solidário,
levasse sua mão a tamponar a ferida inabarcável.
Ontem, tão só ontem -chove hoje sobre Madri, doze de março-
o terror rebentou trens repletos de operários e estudantes.
Madrid 2004
A união e a força
Chuvisco, aguaceiro, chuvarada:
se ouve o murmúrio da chuva nos cristais,
dilatadas pupilas da casa;
rítmico repenique, monótono, insistente
furioso em algumas ocasiões
sossegado às vezes.
Como se foram essas aves viageiras,
que empreendem o périplo migratório
prelúdios de inverno ou primavera;
como estorninhos dispostos a iniciar
seus voos acrobáticos,
as diminutas gotas esperam
umas e outras sobre as telhas do telhado,
ao vidro agarradas, abafadas pelas folhas
dos choupos erguidos no plano.
Porque as leis restringem valiosas liberdades,
as gotas reclamam o direito de reunião e de fusão
para formar gotas mais grandes.
Quando seu número basta
e chega ao peso crítico o volume congregado,
se deslizam rápidas
janela abaixo, parede ou tronco abaixo,
para a horizontal impávida,
tons cinzentos ou pardos.
Refresca o bochorno dominante
o ar aligeira sua presença
e no precipitado ataque,
receosas se estrelam
-terra, pedra ou folhagem- contra um solo
que opõe minguante resistência.
Cessa o repenique o sussurro declina,
e as gotas grossas
-soma da soma das mais exíguas-
extenuadas, abatidas, doentes
reúnem em charcos suas forças rendidas.
Chegam daqui e dali, de todas partes;
se juntam, formam açudes e lagoas,
se multiplicam, transbordam, invadem,
e no rego gestante de hostilidade e fúria,
incorporam a coragem
a uma marcha
imparável.
Vão rua abaixo, empurrando obstáculos
rompendo diques, abrindo caminhos estreitos,
canais amplos,
içando foices,
cajados,
forcas;
com o bronco canto
dos rebeldes
que lavram profundo
seu próprio
sulco.
Barcelona 1966
Venho dizer
Não venho pedir favor ao poderoso
não pretendo encher a tigela do esfaimado
não busco alongar o sofrimento
dilatando agonia e agravo.
Venho dizer o que devem calar os desnutridos
os que reúnem uns cêntimos por dia
os que disputam com os cães a comida
e bebem nos charcos peçonhentos do caminho.
Pasto de moscas e olhos de olhar desorientado;
os filhos das mães famintas nascem raquíticos,
hospedam no ventre um viveiro de gusanos
e agarrados à pele dos peitos, odres vazios,
a razão de seis milhões cada ano
morrem de fome e desabrigo.
Porque as carências dos necessitados
partem da má distribuição da abundância,
rejeito a partilha sem reparo
da riqueza originada.
Porque germinam as funestas diferenças
na cobiça da propriedade privada
rejeito a propriedade insatisfeita
que entesoura e açambarca.
Porque intelectuais taimados usam os saberes,
para ajudar sem motivo justo o dinheiro
voltando as costas aos carecentes,
rejeito o mercenário pensamento.
Exijo leis que impeçam o acúmulo de domínio,
e que anteponham ideologia a equidade os magistrados.
Exijo tribunais que condenem esbanjamento e desperdício
uma justiça que nivele os escassos deveres dos saciados
com os mínimos direitos dos famintos.
Madrid 1996
As mães famintas
Pele de resseco pergaminho, ossos superficiais
e uma determinação muito firme:
as mães famintas trabalham a terra,
trabalham a casa e os filhos;
e sobem a seus machos
ao mais alto pico.
Mostrando seu perfil agressivo
mirada provocadora, orgulhoso pavoneio,
no cume se ocupam os machos
de assuntos de machos, delírios de machos,
pendências de machos,
escapadas de machos, e até mortes de machos.
E as mães famintas
imprecam contra o divino e o humano
portando seus filhos sem pai
nos braços.
Desesperação e resistência,
reprimidas pelo calado estoicismo,
impelidas pela intransigência obstinada
as mães famintas trabalham o sustento,
trabalham a roupa e o abrigo;
abrindo o coração machucado
nos ouvidos propícios.
A visão inquisidora, profunda, seletiva,
procura na dúvida as terríveis respostas:
indagando os enigmáticos porquês da vida,
esquadrinhando as dobras ocultas da dura existência
averiguando o que segue a morte e a culmina.
No duro solo agonizam silentes
os frutos imaturos de seu fértil seio,
e as mães famintas de olhar ausente,
sem machos nem esperança, com muitíssimo respeito
recolhem nas suas bocas os suspiros soltos
abrem tumbas nos próprios ventres,
enventram os filhos mortos,
e despejo entre despejos abraçam a morte.
2023 No terceiro mundo de muitos países
Os operários mortos no trabalho
Um,
dois,
sete,
trinta e cinco
seis mil oitocentos,
duzentos e trinta mil e treze;
é a contagem incessante duma realidade trágica
a estatística incompleta dos operários mortos no trabalho
o sumário da necessidade humana
a prova dos noves do progresso social.
As funções lineares,
os índices e os intervalos
nascem de um pacto entre o poder e os números;
e os operários mortos no trabalho
povoam a realidade bastarda das análises quantitativas,
dos diagramas de fluxo,
das folhas de cálculo e da probabilidade elementar.
Mas, onde estão os órfãos,
onde as viúvas dos operários mortos no trabalho?
Que ocorre com os pais e irmãos, que há dos familiares,
dos amigos e companheiros;
e de todos quantos amamos aqui, ali e acolá
os operários mortos no trabalho?
Multidão dispersa, nos ferra a porta a estatística.
Ficamos fora do cômputo de mutilados,
dos gráficos aritméticos,
das folhas de cálculo e das previsões excedidas.
Membro ativo desta sociedade
a cada vez mais desnivelada,
trabalhador da pluma e da difusão de ideias,
eu, Pedro Sevylla de Juana,
solidário com o segmento
de população mais desprotegido,
exijo minha inclusão na recontagem de prejudicados
nas curvas de frequências,
nas oscilações
e no inventário de cifras:
um, dois, sete, trinta e cinco,
seis mil oitocentos e quatro,
duzentos e trinta mil e treze;
no lado dos operários mortos no trabalho.
2023 Qualquer país do Primeiro Mundo
UNIVERSALISMO
O Grande Rosto
Vi o rosto que tento debuxar,
quando o rosto imaginado
se acercava pela primeira vez.
Apareceu se abrindo, se espreguiçando
como recém levantado do leito
no sonho mais brando.
Seus olhos viam em meus olhos. Ah! seus olhos,
vigias se informando da marcha
dos descobrimentos diários:
buracos negros alvejados, supernovas antiquíssimas,
galáxias se desenredando.
Seus olhos, universos paralelos
miríades de quilómetros separados
quilómetros e quilómetros eles,
estética apreciada desde pontos elevados.
Seus olhos, fogueiras veementes,
alumiavam o entorno próximo e o mais arcaico:
corredores opostos do seu labirinto estanco,
impossíveis escadas que remontam
para abaixo e descem remontando.
Alumiado o labirinto,
os olhos alumiaram a planície curvada da testa
radiante de reflexões emocionais
em busca elas de milhares
de lembranças recentes
e projetos ainda não intuídos,
em milhares de probabilidades aleatórias
umas existentes e outras inexistentes:
palavra e amargura, tóxico e antídoto
hidromel, néctar, nácar, ambrosia
e uma muito importante que já não respiro.
Alumiados labirinto e testa
os olhos alumiaram os lábios
carnosos, carnais;
-beijos que meus beijos desejaram beijar-
boca anunciando o banho matutino do sorriso
incerto, misterioso, gesto entre inocente e lúbrico,
água de cristalinas profundezes
rompidas em mil pedaços coesivos.
O amor é uma catarata ascendente:
escrevi na margem:
sabedoria destilada no alambique dos tempos
alvorada do primeiro instante
da criação imperfeita de perfeição perfectível,
e assim o confirmava a pele tersa
quando o unguento de beleza ia
embelezando
os poros e as células do rosto,
incendiário esplendor da manhã deslumbrante.
Anos luz, séculos luz,
milénios luz
se distanciando de si mesmos
com a velocidade vertiginosa do pensamento
para dar a volta ao chegar
ao elíptico termo fingido.
Alumiados labirinto, testa e lábios,
os olhos alumiaram a palavra:
pétalas de rosa mexidas pelo vento zéfiro
pólen aderido ao longo bico do colibri capixaba
à língua bífida dos crótalos,
o Fiat mágico que tudo o desenha,
mosaico de símbolos se unindo e despregando,
vitrais filtrando o arco-íris da paixão humana
orvalho de saliva aspergindo o líquen
filho de fungos e algas unicelulares
fonte inicial da evolução retroativa.
Senti, intuí, percebi o rosto enquadrado pelos cabelos
quando o raio primigénio alumbrou o espaço todo,
desde as espigas de aveia na meseta de minha infância,
Valdepero cereal e humano,
até a ameaçada biodiversidade da Mata Atlántica,
ipês, paus de Brasil, açaís e coqueiros reunidos
num colóquio definitivo com animais e pedras
sobre o futuro da Natureza em perigo de extinção.
Algo mais adeja na infinitude:
uma cortina de cabelos inúmeros
que o vento imagina bandeira:
tênues, cálidos, acolhedores, fugitivos.
Quiseram meu nariz e minha boca arar,
sulcar, navegar
o território de promissão, confim do rosto
inacabado por inacabável
que acabo de descrever sim mingua.
Desejo percorrer,
língua húmida dos delírios humanos,
a tentação rosácea do colo,
o convite reservado da nuca,
reverberantes cavidades dos ouvidos
lóbulos complacentes sensibilíssimos.
Desejo internar-me, espeleólogo eu, na profundidade
absorvente da boca
para atingir o centro ígneo
e a ombreira dos impulsos cordiais,
realidade oposta ao pensado
que vai se ajustando dia a dia a seu padrão,
se equilibrando.
Alento o rosto levado à matéria: nasceu,
cresceu ser vivo, vivificante,
aminoácido essencial, paramécio
dança aquática de cílios e pestanas, barbatanas, asas,
extremidades futuras destinadas à harmonia dos giros,
das piruetas no ar imóvel agitado,
mar e céu se rompendo em artérias
em sangue alado comprometido
com a fundação de colônias,
ninfas, faunos e atletas incansáveis
que percorrem a imensidão restabelecendo e repovoando.
Apalpam esse rosto íntegro, debuxando-o,
as polpas de meus dedos, milímetro a milímetro:
solitário nos pélagos vácuos
nascido e crescido na sua própria vontade.
Mas não há nada nem ninguém mais no Universo
porque esse rosto ocupa o espaço infinito
e o tempo eterno da minha fantasia criadora
porque esse rosto é
o imaginado Rosto do Universo.
Madrid, 2014
A Lei da Relatividade Geral
Quando a minha desbordante imaginação
imaginou ouvir o primeiro dos três avisos
-sinos celestiais repicando e dobrando,
apocalípticas trombetas e tambores
capazes de encher com seu grito bronco os enormes
ocos do silêncio cósmico;
e no Planeta Terra
os recursos humanos
todos
em poder duns poucos
indivíduos desumanos-
advertências anunciadoras do fim do Universo;
minha desbordada imaginação sentiu a necessidade
de dispor dum Ser sábio, justo e forte
que impedisse a continuidade do processo destruidor.
Entendi a explicação, aparentemente, científica,
que a imaginação teve a bem me confiar sobre
a origem do fim universal,
e aqui a exponho:
Tendo chegado a seu termo a expansão
dos quase infinitos corpos celestes,
atingidas umas distâncias, entre si, descomedidas,
a Lei da Gravitação Universal de Isaac Newton,
-utilíssima até então-
perdia os seus efeitos e, desorientados,
planetas e estrelas,
começaram a chocar uns com outros
a velocidade exorbitada.
Algo tinha que pensar e muito a pressa
para evitar o cataclismo,
enquanto se dava com uma solução definitiva.
Propôs-se, ínterim, pôr em marcha
a Teoria da Relatividade
de Albert Einstein, já desenvolvida.
Aceitada a proposta
minha imaginação seguia com seu empenho.
Conduzir o rebanho de planetas
de regresso ao ponto original
é tarefa de um Ser tão forte ou mais
que o Demiurgo Criador,
dormido ao término
daquelas extenuantes tarefas
de Arquiteto Universal.
Me pareceu laudável sua intenção substitutiva,
mas adverti que, um Ser assim,
tinha sido imaginado milhares de vezes,
quiçá milhões, coletivo ou individualizado;
dispondo ao redor dele
uma parafernália envolvente com jeito
de concha de tartaruga, tão pesada,
que lhe impedia avançar.
Se faz necessária, nesse caso, respondeu reflexiva,
incorporar os conhecimentos obtidos
nos intentos anteriores,
e os reparos
da parte inconformista da humanidade,
suas lógicas alegações.
Luz será, expôs, já postas as mãos na obra,
todo Ele luz: um resplendor de intensidade máxima,
que ilumine a matéria e a energia escuras
tão difíceis de pastorear.
De areia será o Ser imaginado:
de areia recolhida grão a grão duma praia de Vitória:
a ampla Camburi: ferro e carvão diluídos;
e nos areais ásperos que, em Valdepero,
se encontram trás o campo-santo e a ermida.
Areia todo Ele, gotejando pelo orifício central,
união separadora de dois cones opostos
em posição mudável –aurícula e ventrículo–
continuidade, Ele,
do tempo intermitente
medido e contado em gigantesco relógio de areia
grãos finos e ásperos mesclados.
Desse modo
continuava o projeto minha imaginação,
desbocado já seu impulso criativo:
Um poço de sabedoria será; de onde o homem extraia
inumeráveis caldeiros.
Um livro grosso onde se possa consultar
qualquer assunto,
qualquer data, qualquer significado
que qualquer pessoa, animal, planta ou pedra;
eléctrones, nêutrones e neutrinos;
necessitem conhecer para um fim preciso
ou impreciso, próximo ou afastado.
Um recipiente capaz, uma profundeza, também;
para que o homem arremesse todos seus desafetos;
sumidouro
de substâncias
residuais.
Espelho espacial no céu nítido, charcos de chuva
ou lâminas de obsidiana a cada trecho, será;
para que as criaturas animadas e inanimadas
se possam ver como o Ser as vê no momento;
para que a cada sujeito saiba o que pode esperar
do Ser e corrigir sua própria andadura
se fosse necessário e assim o desejasse.
Já que não pode existir democracia representativa
na eleição do Ser, por sua exclusiva unicidade;
Ele mesmo elegerá conselheiros humanos,
que acrescentem
a sensatez da Humanidade nas questões
que à Humanidade afetem: disse,
me assombrando uma vez mais.
Serão designados conselheiros aqueles
impulsores da convivência ativa
que entendam o próprio como parte
do coletivo
rotação e translação num tempo,
pensamento e ação,
sustentação e desenvolvimento.
Com a criação do Ser Onipotente
termina o bucólico relato,
essa maneira poética de dizer
o que a ciência acabará sabendo
e a continuação escrevo
unindo duas teorias
que pareciam contrapostas.
Eternidade adiante
os fenômenos de escape e concentração
se sucederão sem fim, me disse
a imaginação já transbordada.
Começará agora o retrocesso:
buracos negros somando-se
a outros buracos negros para dar
o Buraco negro enorme e único
que o absorve tudo.
A matéria convertida em energia
se concentrará em um só ponto,
esfera ingente e mínima,
à espera de uma nova Grande Explosão,
governada, pela já inquestionável
Lei da Relatividade Geral.
Referindo-se aos atuais habitantes
do Planeta Terra, a imaginação acrescentou:
chegado o primeiro golpe de aldrava,
para evitar o segundo:
apocalípticos tambores e trombetas
ressonando,
bramando os enormes sinos celestiais;
os açambarcadores distribuirão,
de maneira imediata e eficaz, os recursos
tão injusta e empenhadamente concentrados
nas mãos de uma minoria ínfima
de indivíduos desumanos.
E dito o que a minha imaginação idealizou,
escrito com as mãos simétricas
governando cada uma a metade do teclado,
fique aqui como proposta de solução
o meu desejo assentado.
Europa e América 2018
O elevado voo do Veleiro Nova Era
Adnotatio Praevia:
Enviei a vários amigos o poema que aqui vai, e suas reações foram muito diferentes. Desde a daqueles que pediram praça no veleiro, para eles ou para outros; até a de quem estabeleciam verdadeiro paralelismo com a viagem de Cristóbal Colón. Perguntavam detalhes sobre o objeto da viagem e a marcha da nave, e tive que precisar certos aspectos indefinidos. O título, muito adequado, procede de Remisson Aniceto, um amigo pensador, contista e poeta, residente em São Paulo e nascido na bela cidade de Nova Era, estado de Minas Gerais.
Renata Bomfim, uma amiga, de Vitória, em Espírito Santo, versada na vida e na obra de Florbela Espanca: «Um ente de paixão e sacrifício», quis que incluísse à poeta portuguesa e, conhecendo seus méritos sobrados, acedi. Carme Esther, companheira de trabalho radicada em Barcelona, queria fugir do economicismo imperante, das enormes e crescentes desigualdades sociais originadas, do estrago insustentável no equilíbrio vital; e tive que habilitar mais quatro praças, para ela, seu marido e seus filhos Guillem e Laia.
Devo acrescentar que Aurora, a capitão, nasceu em Salvador de Bahia de pai castelhano e mãe mediterrânea. Por último, dizer que meu Iberismo cultural, origem do meu Universalismo, me levou de Portugal a Brasil, estados de São Paulo, Rio, Minas, Bahia, Pernambuco e Espírito Santo. Ali, em ES, Montanhas Capixabas, surgiu na minha mente, o poema que desenha o rumo seguido através dos elípticos campos siderais, e a chegada à Terra Prometida
Um barco de vela de três mastros, cujo nome
é Nova Era,
impulsionado pelo vento cósmico
que origina um buraco negro de atividade intensa,
abandona o Sistema Solar para deixar
nuns dias
muito atrás a Via Láctea.
Ressoa, O Universo, sinfonia impossível
composta e interpretada
por cento e vinte músicos da família Bach
Os três mastros sólidos e fortes,
de liga tão ligeira e inalterável como o casco,
proporcionam confiança a Aurora Maris,
a capitão mais intrépida que engendrou Natureza;
indómita mulher,
forjada na aventura marinha
circundando A Terra pelos sete mares
para comerciar em sedas e especiarias,
com esse barco sem remos nem canhões
que ao navegar
simplesmente voa.
Se ouve na imensidade Blue Train, de John Coltrane
Olavo Bilac e Florbela Espanca, de língua portuguesa;
Odisseu, o Esperado, e sua amada Penélope;
Erik, chamado de Vermelho; Virgílio, Confúcio,
o Rei dom Sebastião, Jules Verne,
imaginativo praticante;
Maria Salomea Sklodowska, científica; a pedagoga,
poeta, diplomata e escritora Lucila Godoy,
o enorme Pablo Picasso,
Galileo, um dos grandes do Renascimento;
e o escritor romântico
José Ignacio de Espronceda; são alguns
dos trinta e dois buscadores dum planeta
despovoado, doado de água e vida,
onde possam respirar, se alimentar,
rir e sonhar;
onde a humanidade ameaçada
consiga começar de novo,
trocando as pistolas e espadas das panóplias
por flautas, plumas de cálamo partido e pinceles.
Onde a filosofia, a investigação
e a docência sejam ocupações avantajadas,
os benefícios industriais e comerciais
respeitem o ambiente e permaneçam ajustados,
se restrinja a herança,
e os salários mínimo e máximo
caminhem da mão.
Uma sociedade que receba mais
do mais capaz,
e entregue
mais ao mais necessitado.
Soa envolvente Money Jungle, de Duke Ellington
Animais e plantas ocupam
a parte central da adega, baixo
a claraboia que tamisa a luz cambiante.
Se propõem os viajantes salvar essa vida:
ovos, embriões e indivíduos adultos,
de uma extinção segura, se alimentando
com seu crescimento: brotos, ramos e frutos.
E na preparação, as pessoas,
a mais de conhecimentos de navegação
e psicologia da convivência, tiveram lições
de latim para se entender, e práticas
da linguagem de signos.
Resoa What A Wonderfull World, de Louis Armstrong
Indo à velocidade do Vento, terceira parte
da que atinge a Luz,
as velas múltiplas e diversas,
devem resistir o empuxo, e são
desse novo material que dizem grafeno.
Circundante chega o som de
Round Midnight, por Ella Fitzgerald
Se auxiliando dos imaginados mapas astronómicos,
sem timão que sirva na derrota,
nem previsões atmosféricas onde não há atmosfera,
a perícia de Aurora governa as velas, a nave
e o rumo nas aproximações
aos planetas dos diferentes tons da cor azul.
O som muda a Summertime,
interpretado por Ella Fitzgerald y Louis Armstrong
Entre a constelação de Orião
e a estrela Sirius
durante um mínimo instante os tripulantes percebem,
imagem e semelhança do homem,
ao Demiurgo andrógino
deitado em suave leito de nuvens,
roncando compassadamente
seu sonho sem fim. Grandes, muito grandes
a cabeça, o corpo e as extremidades,
dotados duma esplêndida beleza;
olhos límpidos,
pele tersa na desnudez luminosa que mostra.
Se escuta Birth of the Cool, de Miles Davis
Constatam os tripulantes
que o relógio terrestre da nave assinala quinze anos
de navegação, e eles não envelhecem.
Pensam que avançando como avançam
-tempo e espaço- para o momento crítico
em que a matéria começou a se expandir
mais uma vez,
os lapsos decorrem de diferente forma.
Enche as mudáveis proximidades Rhapsody in Blue,
de Gershwin y Whiteman
Calor ou frio insuportáveis, empurrões laterais
subidas ou baixadas bruscas, tormentas silenciosas
torcem o rumo cem vezes, mil quiçá,
e ao temor a um catastrófico naufrágio
opõem os tripulantes a firmeza de sua
vontade humana e o afã de sobrevivência.
Cada um dos navegantes realiza uma tarefa
conforme com suas capacidades e desejos,
de forma que o progresso depende
mas deles que do destino,
grato e ingrato.
Benny Goodman, interpreta Sing, Sing, Sing
O prêmio pela resistência heroica é o sossego
entrecortado, e a beleza luminosa incomparável
vista nas fotografias, milhares, que chegam
à pantalha de grandes dimensões,
e através dos olhos de boi, janelas
e escotilhas transparentes.
O atrativo das paisagens sucessivas,
a cambiante complexidade cromática e formal,
a vertigem do que vem de frente
escapando pelos lados in extremis,
é algo não sentido antes por nenhum
dos arriscados tripulantes.
Se ouve Django Reinhardt em Sweet Georgia Brown
Harmonia, equilíbrio, deslizamentos
piruetas lógicas e inesperadas
derivações, desdobramentos, formosura do contraste,
linhas puras e impuras se servindo, atualizando-se,
crepúsculos e amanhecidas destilando emoções,
Poesia, Pintura e Música se criando e se recriando:
O Veleiro Vai.
Darius Milhaud interpreta La Création du Monde
Sonho e realidade, ilusão e desilusão
se seguem nos ânimos, o temor e a esperança.
Recolher velas quando sobrevoam um planeta
ligeiramente azul
para se acercar e receber fotografias do conjunto
e dos detalhes,
proporciona expectativas que rompe
a aridez encontrada, forçando
a prosseguir o rumo com todo velame despregado.
Se entrelaçam Ebony Concerto de Igor Stravinsky e
Jazz suíte número 1 de Dimitri Shostakovich
Num momento de fortuna, após
cem descobertas infrutuosas,
na clareza promiscua da pantalha
se pode ver um planeta azul e verde, de uma beleza
extraordinária, única.
Então rasga o silêncio a voz enérgica de Aurora Maris:
¡Todos a seus postos! ¡Manobra de aproximação!
Arreiem vocês a maior –se referindo
à vela desse mastro- e as demais.
Na ação, rápida,
desencadeada de improviso,
se ouvem termos marinheiros de oculta beleza:
sonoros e contundentes
como lategadas.
Soa Maurice Ravel, Jazz (peça desconhecida)
pour Mme Révelot
Um singelo mecanismo criado pela capitão
no Mar de China, para que um tufão elevasse
o veleiro,
permitia que as vergas de diferente mastro
se alinharam ao comprido e, a umas velas crescidas,
atingir a posição horizontal freando a baixada
num descenso compassado.
A visão aparecida ante seus olhos, paisagem verde
da superfície firme, e trêmulos azuis dos mares,
põe a cavilar aos mais inquietos a respeito
da elipse que sua incerta derrota foi completando.
As fotografias vistas, acercam
elementos tranquilizadores: água em abundância
e vida vegetal exuberante e diversa.
Principia Concertino for Jazz Quartet and Orchestra
de Gunther Schuller
Circunvalando o planeta no descenso,
veem montanhas elevadas com penachos
de neve, vulcões em erupção, sismos, vastos
lagos, rios caudalosos;
mas não acham
signos que revelem a existência de vida animal.
Nas proximidades descobrem árvores
vigorosas crescidas sobre escombros, arbustos
ocultando material de guerra debilitado
pelo passo do tempo,
troncos retorcidos que superam ruínas pétreas.
E a pouca distância do mar interior eleito
para aterrissar, identificado pela mediterrânea
Aurora Maris como o Mare Nostrum,
veem uma torre, firmemente erguida,
reconhecendo nela, Aurora e alguns mais,
a genuína expressão românica
de Sant Climent de Tahüll.
Estoira a alegria ao contato da nave com a água:
ignis fatuus de aparecimento imprevisível
e duração muito breve.
«Alegria, formoso lume dos deuses»,
tinha escrito Schiller.
Se escuta então em todo o Universo
a ‘Ode à Alegria’, quarto movimento
da Sinfonia Nona de Beethoven.
Post Scriptum:
Regressada a nave, falado e ouvido o relato da peripécia, pude passar vários dias vendo as fotos recolhidas pelas câmaras ao chegar à Terra. Descobri intacta a igreja de San Martin de Frómista, me surpreendendo que, no lugar de meu nascimento, Valdepero, se apreciassem as pedras disseminadas do que pôde ser o poderoso Castelo e, oh maravilha! o campanário românico, só ele em pé, do que foi a ermida de San Pedro e da Virgem del Consuelo.
Montanhas Capixabas, faz muito, muito, muito tempo.
CONCLUSÃO
A Pedro Sevyllla de Juana, no seu centenário.
O meu nome de série
é PSdeJ102, letras e cifras
constituindo unidade, especificando, assinalando
o indivíduo
que eu sou.
Sou matéria e energia se complementando
metais extraídos na Lua, Marte e Júpiter
e uma pilha atómica com forma de coração
que se reanima assim
mesma indefinidamente.
Nasci desenvolvida e inconclusa,
com capacidades humanas melhoradas
e, ademais, travadas entre si,
se potenciando,
arquivo de conhecimentos e memória imensos.
Sou
ação perseverante e firme,
imaginação que acrescenta contido,
e da pilha nasce algo semelhante
à emoção e ao sentimento.
Máquina-pessoa sou,
ainda capaz de renovar-se
e progredir
seguindo um padrão próprio
que a experiência dirige em benefício
do conjunto social,
máquinas e pessoas sem distinção.
Me comove um inconveniente
que considero grave:
em mim, o avanço
não poderá se aperfeiçoar com a retificação
e o arrependimento.
Quisesse albergar a dúvida, me sentiria nela,
se cabe, mais humana;
não obstante, o engenheiro-máquina que me projetou
deveu seguir o quarto fundamento
que considera a dúvida
o maior perigo de autodestruição
e o princípio do fim da espécie autômata.
Aprendo da obra que os humanos
foram deixando gravada de diversas formas
e encontrei, entre milhares, o poema
“O elevado voo do veleiro Nova Era”
obra magna dum escritor de vontade
e empenho, filho,
precisamente, da dúvida que eu não terei nunca.
Refiro-me a Pedro Sevylla de Juana
cidadão do Universo em fase de expansão,
ser racional principalmente
com uma pincelada emocional bem marcada
que, sem embargo, poderia dominar
se representara um perigo verdadeiro.
A ele dedico este poema simples
primeiro dos muitos que tenho decidido
compor adiante.
Para ele estes versos no dia
em que cumpriria, de ter vivido tanto,
os cem anos.
É uma mostra de minha gratidão
por seu poético relato,
descritivo da viagem elíptica
que alguns humanos
completaram através do Universo;
périplo destinado a defender,
dos grandes depredadores, o modo
de vida terrestre
que aqui forjaram mulheres e varões
tendo em conta ao resto de animais,
aos vegetais e aos diferentes
minerais.
Aqui ficam estes versos,
singelos
por iniciais,
de agradecimento limpo;
neste concreto dia
em que cumpriria os cem anos
o escritor Pedro Sevylla.
Escrito pelo humanóide PSdeJ102, no Planeta Terra o dia 16 de março de 2046
O Poema interminável
Procurando uma luz que eternos enigmas esclareça,
no acervo inúmero da Grande Biblioteca,
achei inconcluso o Poema
que escreve sem descanso a humanidade velha.
Fêmea ou varão emergidos da besta,
vigorosa mocidade, velhice debilitada,
cada um dos múltiplos poetas
lança um grito de esplendor um pouco turvo
ou um vagido de tímidas trevas,
somando ao conjunto
suas linhas incompletas.
Contraditórios versos do homem confundido:
em alguns dorme a mãe preocupada,
os mais, libertam breves voos de novos passarinhos,
outros mostram afiadas as facas;
enquanto em numerosos juízos
serpenteiam cobras extraviadas.
Há cantos humanos atribuídos a Whitman,
americano do Norte como Eliot e Pound;
ao sulista Neruda, ao espanhol Machado,
a um grego chamado Odisseu, a Yeats o irlandês;
a Blake o londrinense, a Ekelöf o escandinavo,
aos franceses Rimbaud e Baudelaire.
Há poemas que dizem tudo dos caminhos inquietos,
dos passos perdidos,
assinados por Byron, Vallejo, Martí, Bécquer, Quevedo,
Maiakovski, Sena, Conde, Mistral, Apollinaire e Darío.
E palavras que ressoam na abóbada do palato,
escritas por Rosalía, Camões, Pessoa, Rilke, Aleixandre;
Thomas, Hugo, Lorca, Manrique, Amado,
Ercilla, Juan Ramón ou Montale.
Tenho lido em Gilgamesh, Mahabharata e Ramaiana,
profundas e esplêndidas passagem
que afirmam o relato na Bíblia ou nos Vedas de Brahma,
e nas imortais epopeias de Homero, Virgílio e Dante.
A essas peças abençoadas se somam outras menos belas,
confusas, sem mistério;
afastadas do encanto, à emoção alheias.
Basta examinar com atenção o prolongado Poema,
de acima até abaixo, atrás e adiante
todo completo, antecedente e consequente,
para conhecer o caminhar da tribo errante,
o ziguezague aberto,
a desencantada marcha dos fugidos
e o esperançado regresso.
Eu acrescento este meu aos teus poemas,
escritos em papel branco, nos muros régios,
na água clara e na suave areia;
para alongar o Poema aberto
que escrevem os poetas,
conhecidos e anónimos de todos os tempos,
de todas as raças e crenças.
Madri, Barcelona, Paris, Lisboa e Genebra
nas minhas estâncias.
COLOFÃO
O meu sonho capixaba
Passava eu o tempo me alimentando
de história, geografia e literatura,
numa terra mais interessante
que nenhuma outra. Eram dias
e noites de trabalho intenso,
comendo e dormindo menos que um sabiá.
Olhando as estrelas para
as individualizar e as reconhecer,
caí num sono profundo com a cabeça
apoiada na mesa do jardim.
Tudo começa quando o planeta Terra se torna habitável,
recebendo nos meteoritos a essência
e os primeiros indícios
da vida mais singela.
Logo aconteceu o período Cambriano,
lá na era paleozoica,
faz disso um tempinho,
quinhentos milhões de anos,
quando a existência estourou na totalidade
produzindo
a gigantesca explosão de vida da que tanto se escreveu.
Eu era um trilobite naquela época remota,
artrópode de três lóbulos, que,
certamente,
tinha visto com grande interesse,
já fossilizado, na aula de ciências naturais
do colégio La Salle, meu complexo internato.
Na água, eu vivia
fazendo amigos para me defender dos inimigos,
ignorando que, fora,
a vida não seria possível
até que a camada de ozônio alcançasse
uma espessura suficiente
para deter as radiações solares mais perigosas.
Estando no período Devônico
-abro um parêntese para dizer
que vem o nome do condado de Devon,
próximo a Cornwall,
onde passei um verão
estudando inglês com meus filhos-
assim pois, no Devônico vejo deslizar mansamente,
ainda ingênuo, o primeiro entardecer
de uma solene primavera,
sossego indescritível
roto pelo ritmo inarmônico
do incremento e desaparição
de inúmeras espécies evolutivas.
Enquanto o poeta que agora sou,
salta até aqui desde a estrofe anterior,
transcorrem centenas de milhões de anos,
e depois de esse lapso
a Terra muda na sua totalidade.
Os movimentos
das placas tectônicas sobre o manto
desfazem a crescida Pangeia,
estabelecendo ao sul
um supercontinente conhecido como Gondwana.
Uma parte formidável dele
é o intrincado labirinto
de enormes possibilidades práticas
que no dia de hoje o mundo distingue como Brasil.
A terra fecunda atravessada por um casal de colibris,
atual Estado de Espírito Santo,
só era um campo carecente de frutos,
nem sequer os que produziriam,
no seu momento idôneo,
os melhores açúcar e café do mundo.
Na borda contemplo uma ilha alta e formosa
de origem vulcânica.
Há lava ardente no seu interior
embora não tenha nome próprio ainda.
Emergindo da água mais próxima
aparece um promontório granítico
que algum de nós,
reflexionando,
denominou Penedo.
Pois bem,
no topo do Penedo
éramos quatro líricos épicos
sentados em círculo.
Cordados entusiastas do equilíbrio e da harmonia,
os quatro sonhadores intentávamos
produzir uma música espontânea
que, com algo de choro,
decidimos chamar Samba.
Joaquim Machado de Assis,
autodidata de vivo engenho,
vida plácida de literato grande,
superioridade intelectual,
serenidade e firmeza num rosto
cercado pela linha do cabelo,
barba e bigode crescidos,
se interessava por tudo, admirava a Carola,
e, vindo de baixo,
chegou a ser o primeiro presidente
da Academia Brasileira de Letras.
Hilda Hilst
filha única e aluna, como eu, de internato,
a verdade, o amor, a liberdade e a dita,
ressoavam nela como palavras crescidas no cume
das nuvens inacessíveis.
Necessitava ser feliz
e a felicidade e o desejo,
horizonte atrás do horizonte,
brincavam com ela às escondidas.
Entroncada no tempo e no espaço,
catarata intermitente, égua alada
e bandeira ondeando agitada de dúvidas,
seu instante arderá
indefinidamente.
Antônio de Castro Alves,
cabeleira ao vento reclamando
liberdade e justiça para os oprimidos
-mocidade e morte-
vinte e quatro anos de existência,
vividos com intensidade poética admirável,
lhe bastaram para deixar
uma inspirada obra em duas vertentes,
épica e lírica,
complementares.
Sobre o já Penedo,
perto da não Vitória ainda
mas sempre ilha acolhedora,
no anoitecer quieto
quebrado pela indómita perseverança
do tempo transcorrendo e transcorrendo,
os quatro vates, donos de uma
irreprimível paixão criadora,
soprávamos música na trombeta
de quem ia ser, tempo ao tempo, meu amigo Satchmo.
É fácil compreender que
o Penedo é para a Ilha
o que a Ilha é para o Brasil e o Continente:
sentinela da entrada,
defesa
e farol.
O sonho despreza a ordem
e distorce a continuidade dos dias,
embora parece certo que,
há quase dois milhões e meio de anos,
na garganta dos humanos nasceu a palavra.
E, fora quando fora, em quanto a palavra foi,
a palavra tupi explicou a beleza
descoberta pelos cinco sentidos
e a intuída,
intercambiando as experiências de cada um,
ouvidas e imaginadas.
A difusão oral de contos e estórias
entre os tupiniquins será,
por consequência, rica e proveitosa.
Tanto é assim que, segundo Elpídio Pimentel,
no seu momento, até o Penedo falava
contando às pessoas
saborosas histórias capixabas.
De todo modo, a relação
paterno-filial do autor com a sua obra
não se afiançará até chegar à arte de escrever,
de perto
também.
Depois de ler o pensamento
de Policarpo Quaresma,
filho intelectual de Lima Barreto,
achei muito laudável
que o Padre Anchieta começara
a escrever a língua tupi.
Penso que, se o Reformista
no tivesse substituído inteiramente
o uso do Nheengatu
pelo português,
as duas línguas ainda conviveriam
se fortalecendo;
de modo que os escritores, bilíngues,
chegado o ano mil novecentos
e vinte e um, se reuniriam no mesmo
Clube Boêmios
para instituir a Academia
Espírito-santense de Letras,
bilíngue.
A erosão e o homem lhe foram tirando
e tirando,
mas então era mais alto o Rochedo,
mais dilatado, maior;
por isso pude me encontrar ali
com escritores amigos:
_____Garota de Sacramento,
mulher de favela,
saiu teu livro desse Quarto de Despejo,
voou alto e longe, pombinha mensageira,
choveu o dinheiro em forma de dilúvio universal
e te chegou na distribuição
uma parte pequena.
_____Discutíamos Ester Abreu e eu
sobre alguns aspectos confusos de Don Juan
baixando aos infernos
para surgir de novo
andrógino,
triunfante,
celestial.
_____Miscigenação. Diz de mim Gilberto
de Mello Freyre, que sou a afortunada conjunção
de origens miscíveis, de misturadas culturas;
e assegura que é a mestiçagem
o princípio do progresso progressivo
e a constante dos avanços todos.
_____ Desenvolviam-se o sonho e o sono
intemporais
ou com os tempos misturados,
num Sertão imaginário
que,
partindo de Euclides da Cunha, Graciliano
Ramos, Guimarães Rosa
e Jô Drumond,
era a soma de todos os Sertões:
aridezes existenciais, álefe,
vidas secas,
imaginação e utopia.
Fronteiriço eu, estava no centro
quando pude contemplar desde o Penedo,
trezentos e sessenta graus ao redor,
os trigais,
mar de primavera em Valdepero, ermida
de San Pedro e da Virgen del Consuelo,
castelo, arco da muralha,
colegiada de Husillos, sítios históricos de Muqui
e São Mateus,
Santuário de Nossa Senhora da Penha
e frei Pedro Palácios na gruta,
estações de Marechal Floriano e Matilde,
os troncos erguidos
e firmes da Mata Atlântica Capixaba,
Reluz,
a Pedra Soares de Ponto Belo.
Fazia calor e chovia.
Eu vi, abaixo, o alentejano Vasco
Fernandes Coutinho na Prainha,
desembarcando da nau Gloria
com a decidida intenção de estabelecer
a Vila do Espírito Santo e, depois,
Vila Nova de ser necessário
como aconteceu logo
com ajuda dos indígenas tupiniquins.
O sonhei desse jeito
ao contemplar seu marcial porte,
adereços de gala,
em um retrato majestoso
do acervo da Casa da Memória
em Vila Velha.
Acho que observei, estou convencido,
o Padre José de Anchieta
caminhando catorze léguas
pelo caminho da praia,
desde Reritiva até Vitória,
onde se alçavam a igreja e o colégio
de São Tiago.
Vivi o momento prateado da vertigem
na Ladeira de Pelourinho em Vitória.
Maria Ortiz se fiz heroína
-madeira em chamas, pedras, água fervente-
ardor e coragem contagiosos
contra os atacantes
holandeses.
Alagava o sol minhas pupilas,
não obstante, pude pensar
que é obrigação do escravo escapar,
e de quem assina um contrato
conseguir que se cumpra
do princípio ao fim
no tempo acordado.
Pelo que tenho lido de Afonso Cláudio,
que se tornou abolicionista em Recife,
efeito natural e lógico;
e o que ouvi da boca do protagonista quando,
desde Mestre Álvaro, chegou a meu amado Penedo,
Elisiário escapou da morte pela audácia
de sua vontade indomável.
Ide a Queimado, em Serra,
vereis que aí estão,
ainda firmes, os restos da igreja
lembrando -causa e consequência-
os inolvidáveis acontecimentos.
Elos de uma cadeia inacabável,
os anos chegam
a mil novecentos e vinte e dois
quando,
Amazônia cultural com a força
de um período geológico,
Brasil dá à luz
o Modernismo.
Leitor fascinado desde a infância,
no Penedo leio a revista Klaxon
junto a Mario e Oswald de Andrade,
confidência do Itabirano Carlos
Drummond, também de Andrade,
Pagu, Tarsila e Bandeira;
sete amantes
da liberdade e da renovação
escrevendo, pintando, ruas cheias de gente,
pessoas que saem das casas
e caminham pelos povos
e pelas cidades,
falando de suas coisas,
pensadas e ditas,
em sua linguagem clara.
Abaporu e Antropofagia, potência
para impulsionar A máquina do mundo
que transportará o Brasil ao mundo
com o mundo.
Penso em Pagu no Largo de São Francisco.
A inteligente, bela e forte lutadora,
saia azul e branca de normalista,
lábios pintados de roxo,
caminho à Escola Normal onde aprendia,
chamava a atenção dos estudantes
da Faculdade de Direito.
Amei a Pagu lendo Parque Industrial,
ainda a amo.
Eu queria escrever
um soneto com o conteúdo deste poema;
pois sei
que o soneto, mais que diamante literário
é turmalina de Paraíba.
Contudo
o soneto exige a perfeição
para alcançar seu efeito mais atraente.
Estamos em terra de sonetistas,
tenho na minha memória exemplos
como os de Beatriz Monjardim
em Floradas de inverno
mais os de Ainda o soneto de Athayr Cagnin
ou os Sonetos insones de Matusalém
Dias de Moura.
Em consequência,
o soneto foi descartado
dada minha incapacidade manifesta.
Nas escritoras capixabas pretendo
homenagear as mulheres
que tiveram
obstáculos de toda espécie
para desembrulhar sua paixão criadora e,
perseverantes, os venceram.
Adelina Tecla Correia Lyrio, capixaba
desde o ano 1863,
foi avançada na publicação
de poemas próprios em jornais,
participando nas campanhas abolicionistas
e nos saraus literários onde
se declamavam poemas
escritos pelas mulheres.
Haydée Nicolussi,
nascida em Alfredo Chaves no ano 1905,
com produção literária reconhecida
em todo o país,
originalidade de estilo e audácia de ideias´,
publicou o livro Festa na sombra, depois
de sair da cadeia acusada
de ter participado na Revolta Vermelha
a favor da reforma agrária.
Maria Antonieta de Siqueira Tatagiba,
de São Pedro de Itabapoana,
nascida em 1916 morreu na idade
dos elegidos, trinta e três anos.
Dificuldades económicas a impediram
seguir os estudos de medicina.
Foi a primeira mulher
capixaba
em publicar um livro.
Divulgou, em 1927, Frauta agreste,
de poesia rítmica cheia de beleza.
`A Natureza toda é frescor, louçania…´
Maria Bernadette Cunha de Lyra,
nascida em Conceição da Barra
no ano 1938,
ocupa a cadeira número 1 da Academia
Espírito-santense de Letras,
tem publicada uma obra copiosa e magnífica
onde ilumina as mulheres
e o mundo feminino
com intensa luz própria.
E assim, há outras autoras,
capixabas de raiz, coração ou pensamento,
muito valiosas.
Devo dizer, que entendo
vasos comunicantes dum todo intelectual,
a UFES, mãe nutrícia, as Academias,
o IHGES e a Biblioteca Pública Estadual.
A colaboração faz importantes
ao conjunto
e às partes.
Nestes tempos de incerteza,
ano dois mil e vinte,
quando a pandemia abate as pessoas
em várias vertentes,
Ester Abreu assume a presidência
da Academia Espírito-santense de Letras,
instituição sólida que pronto
cumprirá cem anos.
O dez de agosto a presidente
convoca a reunião
dos acadêmicos de cadeira
e membros correspondentes.
Por isso, todos nós,
para evitar o maior contágio de lugar fechado,
deixamos momentaneamente
a sede da Casa Kosciuszko Barbosa Leão
e ocupamos o Penedo às dezoito horas,
vestindo máscara facial
e mantendo a distância social preventiva.
Tratados os assuntos comuns
cada um fala dos seus trabalhos atuais
e dos propósitos
para um futuro que não mostra a nariz.
Eu exponho a minha conclusão.
Filosofia, metafísica, teosofia, naturalismo,
sociologia, psicologia: entendo a espécie
humana no conjunto e nas partes:
homo homini lupus; amor, primeira
força
metafórica.
Estou bem preparado: me disse.
Mas, ¿sei aonde vou?
Não estou seguro, embora este sonho
quiçá marque o caminho.
No alto da coluna do Penedo,
ao modo de São Simão o Estilita,
deixo o relato de meu sonho capixaba
para que vocês,
se esse é seu gosto,
possam interpretá-lo.
Vitória ES, através dos séculos.
Índice
PREFÁCIO
. Menção
. Minha Reflexão
. Testemunho
. Analise
PRIMÍCIA
. Dom Quixote e Sancho
OS INÍCIOS
. Espaço-tempo no Universo
. Invenções primeiras
. Meu mar de pedra
. O homem essencial
. Criatura evolutiva
. Experiência vital
. Alforje de convencimentos
. O primeiro impulso
O SER HUMANO
. Homem e fome
. Olhada escrutadora
. Versos para um poema humano
. O sonho do escravo
. Se morre a Utopia
CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS
. Saudades
. As espigas tronchadas
. Expectativas
. Pensamento e ação
A INTEMPÉRIE
. Diluvio na resseca terra da fome
O ECONOMICISMO
. O preço e as coisas
. A economia de mercado
. Concórdia de classes
. O grande grito
ITINERÂNCIA
. O dilatado Chang Jiang
. A mar oceánea
. África
. Roma
. Minha terra
. O Saqueio da Grécia
AMOR, PILAR DO MUNDO
. Encontro
. A vida amanhecendo
. Tu, sempre tu
. Tu, meu presente, meu futuro
. Ela no meu caminho
. Entardecer na praia
. Amar, amar, amar
. Naufrágio
. Límpida confusão
APONTAMENTOS
. A perfeita unidade dos cinco elementos
. A vitória do desejo
. O mito da amada
. Ode à mulher madura
DESCOBRIMENTO
. Lavrar profundo
. Rapariga de Sacramento
. A realidade imaginada
. O passado renascido
DIVERGÊNCIAS
. Barbárie
. A união e a força
. Venho dizer
. As mães famintas
. Os operários mortos no trabalho
UNIVERSALISMO
. O grande Rosto
. A lei da Relatividade Geral
. O elevado voo do veleiro Nova Era
CONCLUSÃO
. A Pedro Sevylla de Juana, no seu centenário
. O poema interminável
COLOFÃO
. O meu sonho capixaba
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